Em primeiro lugar, o plano de vida de uma pessoa é racional se, e somente se, (1) é um dos planos consistentes com os princípios de escolha racional quando estes aplicam-se a todas as características relevantes da situação, e (2) é aquele entre os planos que atendem essa condição que seria escolhido por ele com plena racionalidade deliberativa, isto é, com plena consciência dos fatos relevantes e depois de uma consideração cuidadosa das consequências.
Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)
Maria Graham era uma mulher peculiar. Era uma aventureira e uma intelectual. Além de livros a respeito da Índia, onde conhecera seu falecido marido e casara-se com ele, escreveria outros, inclusive biografias. Estudou botânica e traduziu obras para a educação de crianças. Até mesmo produziu um relato de um grande terremoto que vivenciou no Chile em 1822. Esse depoimento seria usado em Londres para provar a teoria de que as montanhas se originavam de tais fenômenos e a colocaria como pivô de uma briga científica, na qual Charles Darwin se alinharia a seu lado.
Trecho retirado do livro “D. Leopoldina, a história não contada” de Paulo Rezzutti, sobre Maria Graham (1785-1842), escritora e ilustradora britânica, que foi preceptora de Maria da Glória, filha de D. Pedro e D. Leopoldina, de 5 de setembro a 10 de outubro de 1824
A governanta era uma espécie de pólipo, um ser intermediário entre o homem e a planta, ou seja, entre os patrões e os criados. A família a trataria com um ar de condescendência revoltante e os domésticos só a obedeceriam se fosse a upper nurse, essa rainha absoluta em seus domínios, intimidante em sua majestade e tendo educado pelo menos duas gerações na casa. A infeliz criatura passaria os dias com seus alunos na sala de estudos.
Trecho retirado do livro ”A Viajante Inglesa – O Senhor dos Mares e o Imperador na Independência do Brasil”, de Mary Del Priore
Prezados leitores, para elaborar sua teoria da justiça, fundada em princípios a serem escolhidos livremente pelos indivíduos em um momento hipotético anterior à existência da sociedade, John Rawls faz uma identificação entre o bem, a justiça e a racionalidade. A justiça é um bem, e o bem é algo racional. Para explicar o que é o bem ou o que é bom, Rawls vale-se de uma definição geral: bom é aquilo que tem as propriedades necessárias para que cumpra seus objetivos. Na prática, o que é bom e o que é ruim depende do contexto particular: um objeto como um relógio, por exemplo, é bom se ele mostra a hora de maneira precisa e ele o faz porque tem um mecanismo eficaz que cumpre o objetivo para o qual o objeto foi criado. Assim, haverá critérios específicos para avaliar a qualidade de determinado objeto, a depender dos seus objetivos. Os critérios mudarão quando estivermos falando dos seres humanos e dos seus planos de vida, conforme mostra o trecho que abre este artigo.
Um bom plano de vida embute a noção de racionalidade como um bom relógio o faz: ele é aquele escolhido pelo indivíduo que analisa as circunstâncias que o cercam e pondera as consequências das várias alternativas que pode escolher, de acordo com os objetivos que ele coloca para sua vida. Sob essa perspectiva, o plano bom é o que escolhe o método mais eficaz para o indivíduo atingir suas metas, metas essas que ele escolhe livremente de acordo com seus interesses e valores. Meu objetivo nesta semana é ilustrar esse tipo de plano de vida bom e racional, com as escolhas feitas por Maria Graham, escritora e ilustradora britânica.
Filha de um oficial da Marinha Britânica, aos 23 anos Maria acompanhou o pai à Índia, onde ele trabalharia para a Companhia das Índias Orientais. Durante a viagem conheceu Thomas Graham, também oficial da Marinha Britânica e lá se casaram em 1809. Em 1821, Maria veio com o marido ao Brasil a bordo da fragata Doris por ele comandada. Estiveram em Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, e depois zarparam de novo, mas Thomas faleceu no Chile em 1822. Viúva e vivendo da pensão do marido militar, Maria fica um ano no Chile, mas volta ao Brasil em 1823. Em carta endereçada a José Bonifácio, ela pede uma audiência a d. Leopoldina, então imperatriz do Brasil. É ideia de José Bonifácio fazer dela a preceptora da filha mais velha do casal imperial, considerando a cultura e a experiência de vida da então viúva de 38 anos, como mostra o trecho que abre este artigo. Não foi difícil para Maria estabelecer uma relação amistosa com Leopoldina, uma intelectual como ela, isolada em meio a pessoas que não tinham um décimo da sua cultura e educação e que não lhe davam o devido valor, a começar pelo seu mal-educado e priápico esposo.
Maria aceitou o cargo de governanta sabendo do status ambíguo de que ela gozava no século XIX, como descreve Mary Del Priore em seu livro: tinha mais educação que os empregados domésticos, mas ao mesmo tempo não estava no nível da família, mesmo porque precisava do emprego para sustentar-se. No capítulo que Paulo Rezutti dedica à governanta em seu livro sobre Leopoldina, o historiador lista as razões pelas quais Maria acabou pedindo demissão do cargo: o boicote dos portugueses membros da Corte que não aturavam uma britânica metida que achava que era missão dela levar as luzes da civilização das Ilhas aos confins do mundo; as intrigas feitas contra ela ao Imperador; o fato de ela ser do partido de Leopoldina, que àquela altura, dois anos antes de morrer, já não tinha nenhuma influência sobre seu marido, apaixonado irremediavelmente pela Marquesa de Santos.
Assim como de início viu no cargo de governanta uma oportunidade de ganhar a vida, frequentar pessoas de fino trato como Leopoldina e ser testemunha ocular dos acontecimentos políticos, Maria logo percebeu que era muito intelectual para envolver-se em fofocas e intrigas de áulicos do poder. Sua vocação não era essa. E em 1825, um ano depois de ter saído do Palácio de São Cristóvão, voltou para a Europa e em Londres instalou-se em Notting Hill Gate, um vilarejo de artistas, onde conheceu seu futuro esposo, o pintor Augustus Calcott, com quem se casou em 1827. Lá eles recebiam pintores, poetas, historiadores e editores, e Maria podia falar das suas viagens, dos seus encontros e de suas relações com cabeças coroadas. De fato, apesar da pouca convivência com a Imperatriz do Brasil, elas sempre se correspondiam e há uma carta de Leopoldina datada de 22 de outubro de 1826, menos de dois meses antes do seu falecimento, agradecendo-lhe a balança mineralógica e os livros que Maria lhe tinha enviado.
Maria continuou até o fim da vida fazendo aquilo que sempre quis: viajando, pintando, estudando, escrevendo. Imbuída dos seus valores e das suas metas, humildemente ela tomou as decisões certas para que ela pudesse seguir seu destino peculiar de mulher intelectual. Quanto a Leopoldina, ela nunca pôde fazer essas escolhas que uma pessoa livre como Maria podia e queria, apesar de ter a mesma disposição de espírito: filha e esposa de imperadores, Leopoldina viveu para cumprir suas obrigações e morreu exaurida de tantos partos necessários para dar à luz a um herdeiro varão, o futuro imperador do Brasil, Pedro II.
Prezados leitores, o bom plano de vida de John Rawls, feito de escolhas ponderadas pelo indivíduo racional que escolhe as melhores rotas para chegar a sua meta, é bom para seres livres como Maria Graham, não para seres presos em uma gaiola dourada, como Leopoldina. Que o exemplo dessas vidas paralelas que um dia se cruzaram para nunca mais se encontrar sirva para nos mostrar o que é a liberdade, com seus ônus e bônus.