Juntamente com coisas como eleições livres e periódicas e um judiciário independente com poderes para interpretar a constituição (não necessariamente escrita), a desobediência civil utilizada com o devido comedimento e sensatez ajuda a manter e fortalecer instituições justas. Ao resistir à injustiça nos limites da fidelidade à lei, ela serve para coibir desvios da justiça e corrigi-los quando ocorrem. […]É mais provável que o senso de justiça de uma comunidade se revele no fato de que a maioria não consegue decidir-se a tomar as medidas necessárias para suprimir a minoria e a punir atos de desobediência civil como a lei permite.
Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)
Nós temos que saber ter tolerância. Se o governo e os democratas começarem a agir com uma retaliação generalizada, vamos ter uma radicalização, e aí isso fortalece o Bolsonaro”, afirmou Jobim em seminário virtual promovido nesta quinta-feira (19) pela Fundação FHC, ligada ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Trecho retirado do artigo “Retaliação generalizada após atos fortalece Bolsonaro, diz Nelson Jobim”, publicado no site UOL
Prezados leitores, na semana passada eu lamentei a depredação generalizada ocorrida em Brasília no dia 8 de janeiro, principalmente com relação ao patrimônio cultural objeto da sanha raivosa dos participantes da balbúrdifa. Naquela ocasião eu me vali das lições de Edmund Burke para dizer que o melhor para a sociedade é que não haja rupturas bruscas com o que está atualmente em vigor e que o melhor caminho a longo prazo é que aprimoramentos sejam introduzidos gradualmente, incorporando-as ao que existe, de modo a haver uma transição tranquila entre o velho e o novo. Nesta semana, adicionarei uma nuance a essa apologia do bom comportamento, explicando-lhes o conceito de desobediência civil e sua utilidade para o aprimoramento da sociedade, à luz do que propõe John Rawls no livro mencionado acima. O objetivo é tirar uma lição dos acontecimentos daquele malfadado domingo em Brasília.
A desobediência civil é o desrespeito consciente à lei, uma atitude deliberada que tem o objetivo de ter um impacto político, isto é, de mostrar aos membros da sociedade que há algo de errado no modo como ela está funcionando e que isso deve ser corrigido. Esse conceito implica que todos compartilham uma noção de justiça: se não houvesse um senso comum do que é justo e injusto, a desobediência civil perderia a razão de ser, porque a minoria desobediente nunca conseguiria convencer a maioria obediente. Sob esse aspecto é preciso que haja referências básicas, sobre as quais não haja discussão.
Em assim ocorrendo, a violação à lei é um desafio ao sistema no sentido de fazê-lo realizar uma autocrítica, conforme o trecho que abre este artigo: com seus atos, os desobedientes chamam a atenção para as falhas, para o desvio em relação aos princípios de justiça acordados por todos na posição original, em que os indivíduos decidiram organizar-se em sociedade. Uma vez a minoria sensibilizando a maioria para a necessidade de ajustes e a maioria deixando-se convencer, a sociedade sai fortalecida, pois seus membros foram lembrados daquilo que os une, isto é, as liberdades fundamentais que eles se concederam mutuamente.
Daí porque o grau de tolerância ou intolerância da maioria com a desobediência da minoria é um indicador da existência ou não de um senso comum de justiça. Quanto maior for o acordo sobre as questões fundamentais, maior será a flexibilidade da sociedade em aceitar em seu seio violações à lei como ato político. Quanto maior for a discordância sobre elas, mais dividida a sociedade e menos espaço ela terá para as violações. Nesse último caso, a desobediência civil não tem condições para ser viabilizada e tornar-se fonte de aprendizado mútuo e melhora da coesão social.
Considerando tal visão da desobediência civil e do seu possível papel positivo na sociedade, como devemos interpretar as palavras do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, citadas na abertura deste artigo? Será um convite a nós, brasileiros, que não participamos do vandalismo de 8 de janeiro, darmos chance aos desobedientes civis exporem suas reclamações, suas propostas e chegarmos a um acordo para que possamos caminhar juntos daqui por diante, livres das polarizações? Mas será que a destruição de móveis, equipamentos, quadros, esculturas e relógios é um ato político que pode ser considerado como desobediência civil ou simplesmente um ato de delinquência?
E o que dizer a respeito daqueles manifestantes que acamparam em frente aos quartéis do Exército? Podemos considerá-los como legítimos desobedientes civis, já que não depredaram o patrimônio público, mas apenas expuseram sua visão do que eles consideram como justo? Será então que Nelson Jobim está fazendo um convite à tolerância em relação a uma parcela dos manifestantes que ao menos articulou propostas políticas por meio de cartazes, ao invés de simplesmente quebrarem tudo o que vissem pela frente como sinal de protesto?
Prezados leitores, mais cedo ou mais tarde, nós brasileiros, teremos que tomar uma decisão a respeito do que será tolerável e do que não será tolerável em termos de protestos na nossa sociedade. Se não tomarmos essa decisão conjuntamente, nós o faremos separadamente, cada tribo encastelada na sua fortaleza. Oxalá que encontremos em nosso sistema político modos de desobediência civil que nos permitam aprimorar nossa democracia, ao invés de chafurdar na barbárie, como fizemos no dia 8 de janeiro.