A França tem muitos monumentos históricos, mas sua preservação excelente tem tanto a ver com o ‘vandalismo’ da Revolução quanto com os esforços da estrutura de conservação de monumentos históricos. […] As pessoas procuravam apagar as lembranças visuais do Antigo Regime, mas a atitude implacável em relação a monumentos culturalmente significativos, especialmente aqueles ligados ao feudalismo, não foi vista com bons olhos por todos. […] O abade Grégoire (1750-1831) uma figura proeminente na Revolução, defendeu os monumentos em 1794, descrevendo sua destruição como vandalisme.
Trecho retirado do artigo “How the Revolution gave France a head for heritage conservation” publicado no site The Connection
A História consiste, em sua grande parte, das misérias infligidas ao mundo pelo orgulho, pela ambição, pela avareza, pela vingança, pela luxúria, pela sedição, pela hipocrisia, pelo zelo incontrolado, além de toda a gama de apetites rebeldes que perturbam o público com o mesmo.
Trecho retirado do livro “Reflexões sobre a Revolução na França”, de Edmund Burke (1729-97), pensador político irlandês
Ao mesmo tempo preservar e reformar é outra coisa. Quando as partes úteis de um antigo estabelecimento são mantidas, e o que deve ser adicionado deve ser encaixado naquilo que é mantido, uma mente vigorosa, uma atenção perseverante e constante, vários poderes de comparação e de combinação e os recursos de um entendimento frutífero em expedientes devem ser colocados em prática…
Trecho retirado do livro “Reflexões sobre a Revolução na França”, de Edmund Burke (1729-97), pensador político irlandês
Governo vai criar memorial com obras vandalizadas por extremistas
Manchete de artigo publicado no sítio da Agência Brasil sobre a decisão da Ministra da Cultura, Margareth Menezes de criar um memorial em defesa da democracia
Prezados leitores, na semana passada eu citei Edmund Burke e suas previsões apocalípticas sobre os desdobramentos da Revolução Francesa, para ilustrar a existência de regularidades na História que podem ser detectadas independentemente da análise detalhada das sequências de fatos, cujo desenrolar depende muito de uma confluência imprevisível de fatores. Em seu livro “Reflexões sobre a Revolução na França”, Burke não se preocupa em elaborar uma narrativa de tudo o que havia acontecido desde 1789 com a queda da Bastilha e dos acontecimentos específicos que culminaram no evento de 14 de julho daquele ano. Seu foco é estabelecer lições sobre os males de uma revolução e porque toda revolução é necessariamente ruim.
Um movimento político que pretenda recriar a sociedade e fazer tábula rasa de tudo o que havia antes é nefasto porque a concretização desse projeto se vale dos vícios humanos, conforme relacionados no trecho que abre este artigo. As pessoas apaixonadamente acreditavam que um novo homem e uma nova maneira de organizar as relações mútuas dos indivíduos eram possíveis e imbuídos dessa visão ingênua acabaram dando vazão às características mais reprováveis do ser humano. Acabar com o feudalismo significava acabar com os símbolos concretos dele consistentes nos castelos, fortes, igrejas, túmulos e palácios da nobreza e do clero. Dessa maneira, as pessoas podiam destruir e pilhar os bens dos privilegiados, sob a santa justificativa de que estavam acabando com as injustiças sociais tirando de quem tinha muito para dar a quem não tinha nada ou simplesmente pondo abaixo tudo o que pertencia aos famigerados exploradores. Várias características humanas podiam ter expressão nesse processo de “distribuição de renda”: o desejo de vingança dos despossuídos, a cobiça dos que aproveitavam o tumulto para roubar esculturas, obras de arte e auferir lucro pela venda, a necessidade humana de racionalizar seus atos egoístas, dando-lhes uma aura de moralidade.
Assim é que nesse processo de construção da ordem pós-feudal, os revolucionários deixaram um rastro de destruição, que o abade Gregóire identificou como vandalismo puro, conforme mostra o trecho que abre este artigo. A ação política movida pela “filosofia” como diz Burke, que hoje chamaríamos de ideologia, não deixa um legado porque a visão maniqueísta de que o passado é maligno e o futuro é maravilhoso impede os homens de praticarem aquilo que para o pai do conservadorismo é a base da prosperidade: a capacidade de reformar, que nada mais é do que adicionar elementos novos à tessitura social antiga, fazendo com que esta se renove, se adapte às novas condições, ao mesmo tempo em que sua estrutura é mantida pela robustez que ela mostrou no curso da História. O que é conservado e atualizado sem lhe alterar a natureza básica é intrinsicamente melhor do que aquilo que é construído do nada, pois essa tentativa de ignorar os pilares da sociedade só tornam o novo edifício – para usar a metáfora burkiana construída no segundo trecho citado no início deste artigo- fraco, construído no calor das paixões humanas, mas sem a reflexão necessária e a visão de conjunto que permitem combinar o velho com o novo e de perseverar no esforço de adaptação mútua de um e de outro para o bem da sociedade a longo prazo.
Os franceses aprenderam a lição do preservar e reformar quanto aos seus monumentos históricos. À época da Revolução, uns poucos privilegiados tinham permissão de entrar nos edifícios e apreciar os tetos pintados, os afrescos, as esculturas, os móveis entalhados. Atualmente, aquilo que sobrou da sanha revolucionária faz parte do patrimônio público, sendo acessível por qualquer um, independentemente da classe social a que pertence. Assim, os símbolos da opressão feudal são mantidos pelos órgãos encarregados da conservação do patrimônio, mas a função que exercem segue os ideais do Iluminismo que foi proposto no século XVIII: são instrumentos de educação do povo, e não mais de ostentação do poder e do prestígio dos membros de uma casta em relação a seus pares. A Revolução Francesa, com todos os vícios que Burke apontou em seu livro, teve seu ápice no período do Terror (1792-1794), marcado pelas execuções diárias na guilhotina dos inimigos da Revolução”, mas ela acabou com o advento de Napoleão, a que Burke não conheceu, pois morreu antes da ascensão do corso ao poder, em 1799. Napoleão soube fazer a combinação e a comparação dos elementos novos e dos antigos que permitiram restaurar a ordem, terminar a violência e preservar o legado iluminista da Revolução em termos de liberdades civis e igualdade perante a lei.
Prezados leitores, faço votos que o episódio da depredação do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal ocorrido em 8 de janeiro em Brasília não seja o início de um período de acirramento das paixões no nosso país e de fúria revolucionária. Que a escultura simbolizando a justiça, o quadro “As mulatas” de Di Cavalcanti, o relógio de Balthazar Martinot do século XVIII sejam restaurados e se tornem patrimônio público, apreciado por todos no Memorial a ser criado pelo governo federal e deixem de ser símbolos de poderes repressores para uma parte da população. Nossa paz e prosperidade agradecem.