A sociologia pressupõe a explicação que transcende o curso dos acontecimentos para buscar as regularidades macroscópicas, trazendo embutida uma opção teórica que se manifesta através da eficácia, real ou pretendida, de certos “fatores”, que as escolas sociológicas de Oitocentos e começos de Novecentos procuraram erigir em chaves de suas macroexplicações: o “fator” geográfico, o racial, o demográfico, o econômico etc. Por sua vez, a causalidade histórica seria uma explicação imanente ao curso dos acontecimentos, devendo levar em conta a sucessão cronológica.
Trecho retirado do ensaio “O Preconceito Sociológico em História”, do historiador e diplomata brasileiro Evaldo Cabral de Melo (1936-
Uma coisa é terrível: malditos austríacos a cada passo! Ah, esses austríacos! A propósito, não sei se os senhores ouviram, no Danúbio deu-se uma batalha decisiva: trezentos oficiais turcos foram abatidos, Silistra foi tomada e a Sérvia já declarou independência. É verdade que o senhor, como patriota, deveria estar muito animado, não? Em mim mesmo, ferve o sangue eslavo! Entretanto, aconselho-lhe a ter mais cuidado, tenho certeza de que estão nos vigiando. A espionagem é terrível aqui! Ontem uma pessoa suspeita se aproximou de mim e perguntou se eu era russo. Eu lhe disse que era dinamarquês…
Trecho retirado do livro “A Véspera” do escritor russo Ivan Turguêniev (1818-1883), cuja trama é baseada em fatos reais
Prezados leitores, o livro “Um imenso Portugal”, publicado em 2002, inclui vários ensaios sobre a historiografia, cujo objeto de reflexão é o modo como a História tem sido escrita ao longo do tempo. No ensaio “O Preconceito Sociológico em História”, Evaldo Cabral de Melo contrapõe dois tipos de conhecimento histórico: o generalizante e o individualizante. O objetivo deste humilde artigo é o de explicar as características de cada um dos dois, à luz das ideias do historiador pernambucano, e de posse desses conceitos, tentar aplicá-los a certos fatos históricos para dar-lhes uma interpretação.
Para descrever um tipo e outro de conhecimento, Evaldo Cabral de Melo toma como base os conceitos de causalidade sociológica e de causalidade histórica. Conforme o trecho que abre este artigo, a causalidade sociológica é aquela que procura explicar o porquê de determinados resultados históricos ignorando a série de acontecimentos que se desenrolam ao longo do tempo. Para o defensor de tal abordagem sociológica, o foco nos fatos impede que o historiador veja as tendências gerais da sociedade, levando-o a se perder em detalhes que não têm importância. A única maneira de obter um conhecimento histórico que estabeleça a origem do estado atual da sociedade é escolher um fator-chave à luz do qual todos os acontecimentos podem ser vistos e enquadrados. Daí porque a causalidade sociológica ter natureza generalizante: ela estabelece uma explicação que é válida independentemente dos fatos históricos particulares, pois estes são subsidiários aos fatores-chave que desencadeiam o curso da história, seja porque são meros reflexos deles, ou porque não atrapalham a atuação desses fatores.
Ao contrário, a causalidade histórica foge das abstrações que pretendem categorizar tudo. Seu foco é na cronologia de acontecimentos que conservam sua individualidade ao serem descritos em uma narrativa. Essa abordagem narrativa dá margem ao imponderável, ao inesperado, que deve ser explicado na riqueza dos seus detalhes, porque tais detalhes fazem toda a diferença na determinação de um resultado ou de outro. O individualismo da causalidade histórica reside justamente no fato de a história vivida pelos indivíduos, a história que eles acham que estão fazendo, ser mais importante do que a história que os homens fazem sem saber que estão fazendo, porque não a enquadraram em nenhuma categoria mental, como é o caso da causalidade sociológica.
A conclusão a que chega Evaldo Cabral de Melo em seu ensaio é que o historiador deve combinar essas duas causalidades, pois são mutuamente complementares. Fazer história como Tucídides (460 a.C. – 400 a.C.) fez ao escrever a Guerra do Peloponeso, como um encadeamento factual, impede o leitor de vislumbrar uma moral da História, isto é, o motivo pelo qual a sequência de eventos narrada foi suficiente para desencadear a guerra. Por outro lado, Evaldo critica o Gilberto Freyre (1900-1987) de Casa Grande & Senzala pelo fato de usar o conceito de miscigenação, atribuindo-lhe um poder de harmonização e de criação de uma cultura mestiça, como uma explicação que cobre os três séculos do período colonial do Brasil sem levar em conta as muitas manifestações de conflito e distinções entre pretos e brancos.
Assim, o melhor é ter em mente que nenhum conceito tem o condão de explicar tudo e prever tudo, que os acontecimentos históricos são determinados por uma confluência de várias sequências cronológicas que calham de ocorrer em determinado momento, cujas interações são complexas e impossíveis de serem vistas de antemão. Ao mesmo tempo, é inegável que há certas regularidades e que, mesmo levando-se em conta o papel do acaso, há acontecimentos que têm mais importância do que outros, cujo impacto pode ser influenciado pelo imponderável, mas que não será totalmente determinado por ele. Um exemplo da existência dessas regularidades é o fato de o pensador político britânico Edmund Burke (1729-1797) ter previsto em 1790, em seu livro “Reflexões sobre a Revolução na França”, a ascensão de um líder autoritário como Napoleão, pois a destruição dos valores tradicionais da sociedade e a tentativa de reconstrução em bases totalmente novas levaria à violência e o caos por esta engendrado exigiria um restaurador da ordem.
Tendo em mente o papel tanto das regularidades quanto do acaso, é possível ler o trecho retirado da obra de Turguêniev, citado na abertura deste artigo, sob uma perspectiva histórica. A ação se passa às vésperas da Guerra da Crimeia (1853-1856), em que a Rússia enfrentou a Inglaterra, a França e o Império Otomano. Entre outros motivos, a disputa deveu-se ao desejo da Rússia de exercer proteção sobre os povos de religião ortodoxa que estavam subordinados politicamente ao sultão otomano. Um desses povos é o búlgaro e é um homem búlgaro um dos heróis de “A Véspera”, Dimítri Insárov. Insárov é um nacionalista cujo sonho é voltar para a Bulgária para ajudar seus compatriotas na luta pela emancipação do país do jugo otomano. Para realizar seu sonho, ele vai a Veneza acompanhado de sua esposa russa, Elena Stákhova, e lá encontram Lupoiárov, um russo que lhes relata a experiência de ser espionado na Europa às vésperas de uma guerra na Crimeia.
Prezados leitores, é óbvia a regularidade aqui detectada: a hostilidade entre a Rússia, cristã ortodoxa, e os países ocidentais, que se uniram aos turcos otomanos para lutar contra a Rússia, apesar da diferença de religião entre católicos, anglicanos e muçulmanos. Atualmente, na guerra da Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro de 2022, os turcos não estão no campo de batalha, mas apenas tentam atuar como intermediários para negociações entre as partes conflitantes. De qualquer forma, permanece a desconfiança mútua que existia em 1853, conforme exemplificada na narrativa de Turguêniev.
Em fevereiro de 1856, a Rússia foi obrigada a aceitar um tratado de paz por não ter conseguido atingir seus objetivos no campo militar, tendo abandonado Sevastopol, na Crimeia, em setembro de 1855. Qual será o desfecho nesta nova guerra em pleno século XXI, em que um dos objetos da disputa continua sendo a Crimeia? Aqui entra o acaso e temos que esperar o desenrolar dos acontecimentos, pois a despeito do constante choque de civilizações entre a Rússia e o Ocidente, não é possível ter certeza neste momento sobre quem está em ascensão e quem está em decadência. A história vivida é incerta, mas pode ser realizada por indivíduos que têm valores que querem colocar em prática, valores esses que permanecem ao longo do tempo. A história pensada pelos grandes teóricos é previsível porque ela dá um sentido às ações de indivíduos que, no calor da hora, tiveram que tomar decisões sem terem certeza se elas eram as melhores para que seus objetivos fossem atingidos.
Crimeia em 1853 e em 2023: plus ça change, plus c’est la meme chose? Aguardemos.