A melhor forma de democracia é aquela dominada por pequenos proprietários de terra; e a pior forma de democracia é aquela dominada pela turba urbana formada por artesãos e comerciantes. […] Mas o governo requer habilidades especiais e conhecimento, sendo impossível para alguém que leva a vida de um mecânico ou servo chegar à excelência” – isto é, chegar a ter bom caráter, treinamento e tirocínio. Todos os homens são criados de maneira desigual; “a igualdade é justa, mas apenas entre iguais”; e as classes altas irão imediatamente rebelar-se se uma igualdade artificial for imposta, da mesma maneira que as classes baixas se rebelarão quando a desigualdade for artificialmente extrema. Quando uma democracia é dominada pelas classes mais baixas os ricos são tributados para que haja recursos para os pobres. Os pobres recebem-nos e querem de novo a mesma quantidade, sendo que dar dinheiro assim é como despejar água por uma peneira.”
Trecho retirado do livro “A Vida da Grécia”, do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981), sobre o filósofo grego Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.)
Enquanto a justiça como equidade permite que em uma sociedade bem organizada os valores da excelência sejam reconhecidos, as perfeições humanas devem ser buscadas nos limites estabelecidos pelo princípio da livre associação. As pessoas reúnem-se para perseguir seus interesses culturais e artísticos da mesma maneira que elas formam comunidades religiosas. Elas não utilizam o aparelho coercitivo do Estado para garantir para si próprias uma maior liberdade ou uma maior fatia da renda distribuída sob a alegação de que suas atividades tem um maior valor intrínseco.
Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça”, do filósofo político americano John Rawls (1921-2002)
Prezados leitores, na semana passada eu abordei um diálogo entre Sócrates e Alcibíades, tal como criado por Platão (427 a.C. – 347 a.C.) para discutir como a ideia de conhecimento estava ligada à ideia do Bem: para Sócrates, só o conhecimento leva à virtude, pois permite àquele que o adquire saber fazer as coisas na prática, o que implica saber fazê-las na hora certa, pelo tempo certo e para as pessoas certas, trazendo benefícios e felicidade. Nesta semana, abordarei algumas implicações políticas dessa dimensão ética do conhecimento que podem ser detectadas no pensamento de Aristóteles em termos da visão que ele tinha da democracia e da justiça. Meu objetivo será então comparar tal visão com aquela de John Rawls, explicitada no livro mencionado na abertura deste artigo.
Como mostra o trecho que abre este artigo, a ideia de que só o conhecimento leva à excelência, o legado de Sócrates para a filosofia grega, levou Aristóteles a ver um lado negativo no governo pelo povo: quem tomava as decisões sobre guerra, paz, destinação de verbas públicas, punições, não eram os indivíduos preparados especificamente para exercer tais funções, mas cidadãos comuns cujo conhecimento limitava-se ao ofício que exerciam. No final das contas, essa falha levava a que os cidadãos que participavam das assembleias na ágora de Atenas decidissem levados por suas paixões, por seus interesses particulares, sem terem uma visão do conjunto ou do longo prazo. Se a sociedade tivesse uma maioria de pessoas pobres, elas iriam votar para tomar dinheiro dos ricos, o que poderia levar estes a se revoltarem e tentar trucidar a maioria miserável. Se a sociedade tivesse uma maioria de pessoas ricas, elas iriam votar para dar-se mais privilégios, o que tornaria a situação dos pobres insustentável. O ideal, dadas as deficiências intrínsecas da democracia, é que a sociedade tivesse um grande contingente de pessoas na classe média, de modo que as paixões e a cobiça tanto dos ricos quanto dos pobres fossem controladas de maneira suficiente a garantir a estabilidade do governo.
Sob essa perspectiva, a democracia era um regime instável, justamente devido à desigualdade intrínseca entre os homens: sempre haverá diferenças entre as pessoas, porque elas nascem desiguais, sempre haverá ricos e pobres e, portanto, as quedas de braço entre uns e outros serão inevitáveis. Daí Aristóteles não ver problema algum em haver escravos em uma democracia. Os escravos só tinham força física, e não inteligência, e sua liberdade deveria ser restrita para que seu trabalho braçal possibilitasse que os homens de talento pudessem adquirir conhecimento e chegar à perfeição a que sua natureza os inclinava. Assim, era justo sacrificar os direitos de uns em prol da excelência que alguns poderiam atingir, de forma que para Aristóteles o princípio da excelência era um princípio de justiça, pois servia de critério de distribuição de direitos e liberdades.
O mesmo não ocorre na filosofia política de John Rawls, conforme mostra o trecho que abre este artigo. A excelência, a perfeição só podem ser buscadas no âmbito das liberdades fundamentais garantidas a todos os cidadãos, independentemente da sua beleza, da sua inteligência, do seu bom ou mau caráter. A razão disso está no fato de o pressuposto da teoria da justiça de Rawls é que os homens tomam a decisão de entrar em um contrato social e o fazem em uma posição original em que eles não sabem de antemão que posição ocuparão na sociedade, que qualidades e defeitos terão, que valores perseguirão. Tal ignorância primeva os leva a adotar princípios de justiça que estabeleçam certos direitos mínimos, entre os quais a liberdade de consciência e de associação. Se um grupo de pessoas quiser reunir esforços para perseguir uma excelência em determinado ofício ou área do conhecimento, elas terão plena liberdade para fazê-lo, assim como serão livres para escolher não atingir perfeição nenhuma.
Dessa forma, para John Rawls, o princípio da perfeição não é necessariamente um valor coletivo para cuja concretização recursos da sociedade sempre deverão ser alocados. Pode até ocorrer de os cidadãos decidirem reservar certa porcentagem dos impostos pagos por todos para incentivar uma determinada arte, um determinado conhecimento. Mas se tais subsídios alocados a atividades de excelência tornarem a vida dos menos abastados pior, eles devem ser rechaçados, porque os princípios da justiça escolhidos pelos indivíduos na posição original incluem o princípio da diferença: nenhuma vantagem pode ser concedida a nenhum grupo a não ser que ela beneficie aqueles que têm menos recursos.
Em suma, se Aristóteles estava disposto a sacrificar a liberdade de uns em prol do valor eterno da excelência porque não dava grande valor à igualdade nem à democracia, um teórico político como John Rawls, formado no seio da democracia americana, cuja Declaração de Independência fala que “todos os homens são criados iguais”, sempre priorizará a igualdade de acesso às liberdades e direitos, mesmo que isso implique a criação de uma sociedade menos recheada de grandes homens, homens que fazem do conhecimento uma virtude e a colocam em prática em suas ações.
Prezados leitores, ficam duas perguntas: em que medida a busca da excelência é um defeito ou uma virtude? Em que medida a busca da igualdade de oportunidades é um defeito ou uma virtude? Qual busca leva a resultados mais concretos ou a resultados mais duradouros? A resposta depende dos valores de cada um e em última análise a priorização da excelência ou da igualdade é uma escolha política, a ser feita, em pleno século XXI, não na ágora de Atenas, mas no Congresso Nacional.