Mas apesar de a Reforma ter sido salva, ela sofreu, juntamente com o Catolicismo, do ceticismo estimulado pela grosseria das polêmicas religiosas, pela brutalidade da guerra e pelas crueldades da crença. Durante o holocausto, milhares de “bruxas” foram mortas. Os homens começaram a duvidar das crenças que pregavam sobre Cristo e praticavam o fratricídio puro e simples. Eles descobriram as motivações políticas e econômicas escondidas em fórmulas religiosas, e suspeitavam que os governantes não tinham fé nenhuma, mas sede de poder. […] A Paz de Westfália acabou com o reinado da teologia na mente europeia, deixando a estrada obstruída, mas transitável para as tentativas da razão.
Trecho retirado do livro “Começa A Idade da Razão”, do filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981), sobre a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) na Europa que opôs os católicos aos luteranos, calvinistas, unitaristas, anabatistas e demais seitas protestantes
Na qualidade de cidadão do Catar, tenho orgulho do que aconteceu. Não sei quando os ocidentais vão perceber que os valores deles não são universais, Há outras culturas com valores diferentes que devem ser igualmente respeitadas. Não nos esqueçamos que o Ocidente não é o porta-voz da humanidade.
Comentário retirado do Twitter sobre a proibição por um guarda à entrada de um torcedor vestido com uma camiseta com arco-íris para assistir ao jogo entre Estados Unidos e País de Gales em 21 de novembro
Talvez eles não estejam prontos para receber um mundo tão diverso quanto o nosso. Vocês querem ser os anfitriões de uma festa, mas nem mesmo gostam dos convidados.
Comentário retirado do Twitter sobre o mesmo episódio
Prezados leitores, neste meu humilde espaço eu já fiz referência algumas vezes à Guerra dos Trinta Anos e à Paz de Westfália, que pôs fim a ela. Foi uma disputa por ideologias religiosas para decidir quem falava a verdade sobre o significado da Bíblia e da figura de Cristo. Foi uma disputa de poder entre o Sacro Império Romano-Germânico, liderado pela ultra-católica dinastia dos Habsburgos, cujas possessões incluíam terras europeias americanas, africanas e asiáticas, e os Estados europeus como França, Inglaterra, Suécia, Dinamarca e os principados alemães, que queriam limitar o poder imperial e adquirir maior autonomia. E finalmente foi uma disputa pelo patrimônio material da Igreja Católica, dona de terras e dos direitos atrelados a elas, como cobrar direitos de passagem e de uso.
Em seu balanço final sobre o impacto da guerra sobre a Europa, Durant destaca certos fatos estabelecidos pelos historiadores que estudaram o assunto: a diminuição drástica da população na Alemanha e na Áustria de 21 milhões para 13 milhões e 500 mil habitantes; o esvaziamento de 29.000 das 35.000 vilas que existiam no Reino da Boêmia em 1618; a destruição de 1.090 das 1.717 casas que estavam de pé em 1618 em 19 vilas da região da Turíngia. E principalmente, Durant aponta quem mais sofreu com a Guerra dos Trinta Anos, os camponeses, sobre cujos cultivos as tropas de católicos e protestantes passavam com seus cavalos e charretes, cujas colheitas eram confiscadas pelos exércitos para abastecer os soldados, cujas filhas eram estupradas e assassinadas, cujas casas eram saqueadas e queimadas.
Como a brutalidade e a crueldade aconteceram de todos os lados que teoricamente lutavam para colocar em prática os ideais morais de Cristo, a Guerra dos Cem Anos foi um divisor de águas mental na Europa, conforme explica o filósofo e historiador americano no trecho que abre este artigo. Houve a total perda de credibilidade das religiões que pretendiam ser a verdade suprema. Se o convencimento dos que professavam uma fé diferente só era possível na base do uso da força bruta, será que a fé católica ou a protestante tinham algum elemento de verdade? Ou eram um mito para instilar medo nas pessoas, fazê-las obedecer ao chamado de guerra e permitir que o defensor de uma religião ou outra conquistasse poder pela derrota do inimigo e pela conquista do botim?
Daí que depois de 1648, a tolerância abriu caminho na Europa, não porque tenha havido um acordo entre as partes opostas para chegar a uma contemporização, a uma terceira via que contemplasse aspectos de todas as seitas religiosas, mas simplesmente porque o exaurimento material causado pela matança e destruição levou também a um exaurimento espiritual, à perda da crença naquelas verdades que haviam inspirado o horror da guerra. A teologia, como construção intelectual sobre o significado e o conteúdo da religião, deixou de ser levada a sério, porque a fé no sobrenatural deixou de ser um motivo válido para matar e morrer. As milhões de vítimas da refrega entre católicos e protestantes haviam sido sacrificadas em vão, porque ao final, pela Paz de Westfália, estabeleceu-se que cada Estado teria a religião que seu soberano escolhesse e aqueles que fossem de outra confissão deveriam partir. Não se chegou a uma conclusão definitiva sobre o que era verdadeiro e falso sobre Deus e Jesus Cristo, simplesmente decidiu-se pelo fim da guerra por razões práticas, para que houvesse a ordem necessária que permitisse às pessoas ter uma vida normal de trabalho rotineiro.
Assim, não haveria mais guerras entre confissões religiosas rivais porque não haveria mais motivo para disputas teológicas: cada Estado soberano ficaria no seu quadrado ideológico (em latim, Cuius regio eius religio), sem invadir o espaço do outro e estamos conversados. A universalidade da Igreja Católica caiu por terra e o papa nunca mais teve o poder político de que gozava quando a religião era considerada relevante o suficiente para levar as pessoas a lutar pela sua defesa. A tolerância que surgiu na Europa na primeira metade do século XVII era a da constatação de que não era possível ter bases sólidas, aceitas por todos, para uma dedução das verdades religiosas. Cada um que adotasse a sua verdade e não pretendesse ter a última palavra. Quem pretendera atingir a unanimidade só causara danos às pessoas e às coisas.
Livre da religião como assunto digno de reflexão, a Europa embarcou no rumo da razão como ferramenta para conquistar poder sobre a natureza e moldá-la às necessidades materiais do Homem, o que se revelou mais produtivo para as pessoas do que discutir se o corpo de Cristo está ou não na hóstia consagrada ou se o destino de cada um de nós já foi estabelecido por Deus no começo dos tempos. Foi um percurso particular, que não se reproduziu em outras regiões do mundo, e daí que essa tolerância desenvolvida no continente europeu, fruto da decepção com o efeito da religião sobre a vida do homem, ser um valor determinado historicamente.
À luz dessa explicação sobre o impacto da Guerra dos Trinta Anos sobre a mentalidade europeia e sobre os valores que a civilização ocidental acabou adotando, as palavras do cidadão do Catar mencionadas na abertura deste artigo não são tão chocantes, como poderia parecer à primeira vista. Esse tuiteiro quer que os torcedores que estão no país para assistir à Copa do Mundo parem de reclamar sobre a proibição de qualquer imagem de arco-íris que possa ser vista como apologia LGBT. O Catar é um país que segue os preceitos da religião muçulmana, que nos países em que ela é praticada pela maioria da população, é seguida como guia de comportamento moral.
Afinal, qual é a culpa dos muçulmanos se os Ocidentais consideram há quatro séculos que a religião é uma questão de escolha que não pode pretender ser universal? Os muçulmanos não tiveram sua fé nos benefícios da religião abalada irrremediavelmente pela fome, pelas pragas, pelas torturas e pela morte causadas pelas guerras religiosas em nome de Cristo. Por que haveriam de duvidar do seu profeta Maomé, se ele não foi usado em vão por irmãos para odiarem-se e vingarem-se mutuamente, ao mesmo tempo que esses cristãos sanguinários pretendiam saber quem era o verdadeiro Filho de Deus?
Sob essa perspectiva, o Ocidental que exigiu no Twitter que os habitantes e as autoridades do Catar recebam os apologistas de LGBT de braços abertos em nome da diversidade quer que os muçulmanos adotem a mesma atitude indiferente que uma ampla parcela da população nos países ocidentais têm em relação aos preceitos religiosos: já que nenhum deles pode ser considerado verdadeiro, então que todos sejam tolerados, inclusive o preceito da não religiosidade.
Prezados leitores, em 2022 no Catar a trilha da tolerância ocidental, fruto da desilusão religiosa, cruzou a trilha da intolerância oriental, fruto da fé na religião, que ainda vigora. O melhor a fazer nessa encruzilhada é que os transeuntes das respectivas trilhas, ao findar a Copa do Mundo, sigam o preceito estabelecido na Paz de Westfália: cada um que continue em seu caminho, construído ao longo de um percurso histórico irreproduzível e irredutível às premissas de outra civilização, cuja trilha é fruto de outros desafios e de outras respostas, como nos ensinou o historiador Arnold Toynbee (1889-1975) em sua obra-prima “Um Estudo da História”. Que a tolerância e a intolerância de ocidentais e orientais possam assim conviver no planeta Terra sem que uns queiram se imiscuir nos assuntos do outro.