A história sorri ante todas as tentativas de forçar seu fluxo em padrões teóricos ou em compartimentos lógicos; ela destrói nossas generalizações, viola nossas regras. A história é barroca.
Trecho retirado do livro “Começa A Idade da Razão”, do filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981)
Estas são as eleições mias importantes para a política externa brasileira desde o início da Nova República. Estão em jogo duas concepções radicalmente distintas de como o Brasil deve se conduzir internacionalmente. E o sistema internacional está em seu momento mais inseguro: há uma mistura perigosíssima e sem precedentes de competição entre as grandes potências que têm armas nucleares.
Trecho retirado da entrevista dada pelo pesquisador da FGV-SP Matias Spektor, especialista em Relações Internacionais, ao jornal O Globo em 16 de outubro
Hegel eleva este método ao status de princípio de explicação histórica. Ocorre que a progressão dialética a partir de duas demandas antagônicas rumo a uma solução de compromisso é suficientemente útil. No entanto, Hegel continua a desenvolver a ideia, para mostrar como a história tinha que passar por todos esses estágios com base nesse princípio. Nem é preciso dizer que isso somente é possível distorcendo os fatos. Uma coisa é reconhecer um padrão nos acontecimentos históricos, outra muito diferente é deduzir a história de tal princípio.
Trecho retirado do livro “The Wisdom of the West” do filósofo e matemático inglês Bertrand Russell (1872-1970) sobre o método dialético do filósofo alemão G. W. F. Hegel (1770-1831)
Prezados leitores, na semana passada eu tomei o caso da história recente da Venezuela para mostrar como uma concepção utilitarista de justiça pode acabar minando os nobres objetivos de um governante como Hugo Chávez, que quis acabar com a pobreza no país colocando o grupo dos privilegiados contra os não privilegiados, de forma a fazer do primeiro um instrumento para a resolução dos problemas do segundo grupo. Essa receita acabou sendo insustentável no longo prazo e prejudicando o país como um todo. A razão pela qual falei da Venezuela é que o Presidente Bolsonaro sempre se vale do exemplo do desastre econômico no país vizinho para ilustrar sua ideia de que se Lula for eleito viveremos o mesmo drama aqui, como se o candidato do PT fosse repetir a receita de distribuição de renda na marra que Chávez implantou no início do século XXI.
Meu objetivo nesta semana é mostrar como essas polarizações que se fazem no discurso sobre os acontecimentos históricos se relacionam muito mais à propaganda do que a uma visão equilibrada dos fatos. Para tanto vou me valer da explicação que Bertrand Russell dá do método dialético, tal como reelaborado pelo filósofo alemão Hegel para explicar os movimentos históricos. Para Hegel, a dialética é uma força que move a história e determina o desdobramento dos fenômenos particulares, que pela sua própria dinâmica trazem em si o germe da mudança, de forma que novas características surgem, contradizendo as antigas. A peculiaridade do esquema explicativo de Hegel é que ele tem uma concepção metafísica dessa força-matriz, porque a vê como um processo espiritual e não material. É aí que mora o perigo, segundo Russell, conforme o trecho que abre este artigo.
De fato, se o ciclo de choque entre entes opostos, tese e antítese, e sua combinação em uma síntese, é um princípio teórico a ser aplicado sempre, o que acaba ocorrendo é que as circunstâncias materiais acabam sendo encaixadas nessas categorias de qualquer forma, independentemente das nuances da situação concreta. A filosofia da história de Hegel é que há uma luta entre duas forças e ao final surgirá a síntese no último estágio, o Absoluto que para ele era a Prússia do século XVIII. Russell aponta assim a grande falha no princípio dialético de Hegel, que é o de servir para a propaganda nacionalista.
Uma certa filosofia da história como arma de propaganda pode ser detectada na visão maniqueísta peculiar do presidente Jair Bolsonaro, que cria sua própria narrativa de ciclo histórico, o qual deve caminhar rumo ao progresso. A esquerda no poder, com suas medidas de justiça social, causa atraso e pobreza, devendo ser superada por um governo como o dele, que será o da liberdade e o da prosperidade. Mas será que a história contemporânea se encaixa nesse esquema proposto de superação da herança esquerdista na América Latina?
Para Matias Spektor, a resposta é um retumbante não, conforme ele explica na entrevista mencionada na abertura deste artigo. A concepção de relações internacionais e de política externa de Bolsonaro nos levará ao isolamento em dois níveis: no nível regional sul-americano, pelo fato de a retórica do nosso presidente afastar países em que atualmente há governos de esquerda, como Chile, Argentina, Colômbia e Bolívia; e no nível internacional a narrativa bolsonarista de denunciar os ambientalistas levará o Brasil a sofrer sanções econômicas se não nos comprometermos a de fato diminuir nossas emissões de gás carbônico, algo que o presidente não parece disposto a fazer, por considerar isso uma imposição descabida à soberania do país.
Por outro lado, Spektor parece adotar uma visão respaldada no materialismo dialético de Karl Marx, que tomou a concepção hegeliana de dialética e tornou-a um processo não espiritual, fundado nas condições materiais existentes na realidade e não em categorias metafísicas. Se Spektor critica Bolsonaro, ele tampouco poupa Lula, que em seus dois mandatos como presidente da República tentou minar a hegemonia americana investindo em relações com países em desenvolvimento, como a África do Sul, a Rússia e a China, com o objetivo de aumentar a multipolaridade. Para Spektor, a situação agora é outra e esse velho esquema de que Lula usou e abusou no começo do século XXI não vai funcionar mais, porque as grandes potências, China, Estados Unidos e Rússia, estão se engalfinhando como nunca antes, e elas acabarão exigindo dos países mais fracos, como o Brasil, assumir uma posição. Assim, Lula, se for novamente presidente, não poderá flertar impunemente com os inimigos dos Estados Unidos, sem que os americanos nos punam por isso. O cenário geopolítico mudou e tanto o isolacionismo de Bolsonaro como o multilateralismo de Lula não fazem mais sentido em um mundo que está abandonando a livre troca de produtos e a livre circulação de pessoas e está se organizando em torno de grupos de países liderados pelos gigantes que estão disputando quem vai ditar as regras da nova ordem mundial.
Prezados leitores, se a Síntese histórica não será o Absoluto hegeliano ou bolsonarista ou mesmo lulista, mas o fruto das mudanças na ordem globalizada que vigorou até agora, como explica Matias Spektor, que rumo o Brasil deve tomar? Será que devemos escolher um lado ou independentemente do lado que escolhermos estaremos em uma situação infeliz, pelas próprias restrições que passarão a viger no mundo em termos do intercâmbio entre os países? Se correr o bicho pega e se ficar o bicho come e como disse Will Durant, a história é barroca, feita de luzes e sombras, imprevisível, sempre refratária aos nossos esquemas mentais. Aguardemos que as contradições da situação atual sejam trazidas à luz e revelem o novo caminho.