Existe uma percepção, principalmente de grupos sociais emergentes, de que ter um diploma é uma maneira de ascender socialmente. Não há nada de errado com isso, inclusive é natural que se pense assim, pois o próprio mercado de trabalho pressiona por mais qualificação. Quem não tem o ensino médio dificilmente consegue ocupação. Porém essa é uma visão credencialista da educação e nem sempre obter uma credencial corresponde à efetiva aquisição de habilidades, competências e saberes equivalentes ao grau conquistado. O que vemos hoje no Brasil é uma inflação dessas credenciais educacionais sem lastro. […] Acho que o papel do governo seria garantir que, para obter qualquer diploma, o aluno teria necessariamente de demonstrar publicamente que houve aquisição das competências, dos conhecimentos e das habilidades correspondentes.
Trecho retirado da entrevista dada pelo economista Eduardo Gianetti da Fonseca a Paola Gentile e publicada em 30 de maio de 2015
As pessoas se esquecem que nós espalhamos universidades por esse país afora. E vou dizer uma coisa pra você: o Prouni foi a maior revolução educacional que a gente fez nesse país. Milhões de meninos da periferia, meninos negros e negras que estudavam em escola pública tiveram a oportunidade de primeira vez fazer uma universidade que era privilégio de rico. Era privilégio da classe média alta. Aliás, Ciro, você sabe perfeitamente bem que esse país é tão contra a educação que o Peru teve a sua primeira universidade em 1554, e a nossa primeira foi em 1920. Ou seja, a elite brasileira nunca se preocupa a educar. Precisou um metalúrgico sem diploma cuidar disso.
Trecho retirado da fala do candidato Luiz Ignácio Lula da Silva no debate presidencial ocorrido em 28 de agosto´
A distribuição da riqueza e da renda, e as posições de autoridade e responsabilidade devem ser consistentes com as liberdades básicas e com a igualdade de oportunidade. Todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza e as bases sociais do respeito próprio – devem ser distribuídos igualmente, a não ser que a distribuição desigual de alguns desses valores ou de todos eles, seja vantajosa para todos.
Trecho retirado do livro Uma Teoria da Justiça” do professor de filosofia política americano John Rawls (1921-2002)
Prezados leitores, em seu livro Uma Teoria da Justiça, John Rawls busca chegar a um conceito de justiça tomando como premissas dois conceitos de igualdade: o de que todos terão a oportunidade de chegar a posições destacadas na hierarquia social, sem haver nenhuma restrição relativa à raça, à origem étnica ou social do indivíduo, e o de que as carreiras estarão abertas a pessoas de talento. Além disso, ele assume que os membros da sociedade usufruem das liberdades naturais, a saber, a liberdade de religião, de manifestação do pensamento, de associação, de opinião.
O percurso que John Rawls estabelece para chegar à ideia do que é justo, considerando que os homens são livres para se esforçar e concretizar seus talentos, é dividido em duas etapas. De início, há uma estrutura básica em que os bens da sociedade são distribuídos igualitariamente: as pessoas têm direitos e obrigações, renda e patrimônio iguais. Tal estrutura básica serve como ponto de referência para julgar melhorias na estrutura social e avaliar se ela é justa ou injusta. No âmbito da estrutura liberal explicada no parágrafo anterior, como justificar as diferenças na distribuição dos bens que podem surgir quando se abandona esse estágio de igualdade total? John Rawls estabelece uma proibição e um mandato.
A proibição consiste em que as diferenças nas posições de autoridade e responsabilidade, e na quantidade de renda e riqueza possuída, não podem ser justificadas sob o argumento de que as desvantagens de um grupo social são compensadas pelas vantagens maiores angariadas por outro grupo social. Conforme o trecho que abre este artigo, o mandato de concretização da justiça consiste em organizar a sociedade de forma que mesmo que haja uma distribuição desigual dos recursos, essa distribuição seja vantajosa para todos os membros da sociedade, porque o ambiente de liberdade e de igualdade de oportunidades oferece boas perspectivas para todos.
Sob essa perspectiva, para evitar o jogo de soma zero, em que o ganho de um é compensado pela perda do outro e estimular uma situação em que todos ganham, a formulação do conceito de justiça liberal proposto por John Rawls requer a aplicação de um princípio fundamental na economia, qual seja o princípio da eficiência, proposto pelo economista italiano Vilfredo Pareto (1848-1923) segundo o qual um arranjo é eficiente quando é impossível modificá-lo de forma a tornar a vida de pelo menos uma pessoa melhor sem que ao mesmo tempo a situação de outra pessoa seja tornada pior. Meu objetivo a partir desse ponto é analisar as conquistas educacionais propaladas pelo candidato à presidência Lula, conforme explicadas no trecho que abre este humilde artigo, à luz desse princípio e das ideais de Rawls.
Não há dúvida de que o acesso ao ensino superior foi grandemente facilitado por meio do PROUNI, o Programa de Universidade para Todos, criado em 2005, que fornece bolsas de estudo integrais ou parciais em instituições de ensino privadas de todo o Brasil para estudantes cuja renda familiar é de até um salário mínimo e meio por pessoa. Durante os dois mandatos de Lula na presidência, de acordo com a União Nacional dos Estudantes, mais de 1 milhão e duzentas mil pessoas foram atendidas. Esses dados permitem-nos dizer que Lula não mentiu no debate de 28 de agosto quando disse que seu governo democratizou o acesso à universidade, permitindo a estudantes de escola pública, tradicionalmente alijados do ensino superior por não conseguirem ser aprovados nos exames de admissão às universidades públicas, conseguirem seu diploma. A pergunta que se coloca é: essa concessão mais fácil de diplomas, viabilizada pela frequência a instituições privadas, foi eficiente do ponto de vista paretiano?
Se ouvirmos os comentários de Eduardo Gianetti da Fonseca citados acima, os diplomas universitários concedidos aos membros das “classes emergentes” não foram benéficos para todos. Os diplomados podem ter realizado o sonho de ser doutores, mas quanto às habilidades e conhecimentos que pudessem ser usados para a realização de atividades econômicas produtivas, o PROUNI deixou a dever e seria tarefa do governo exigir, em contrapartida à benesse do financiamento dos estudos, que o aluno demonstrasse ter de fato aprendido alguma coisa que o tornasse um recurso humano valioso. E a necessidade de tais recursos é premente no Brasil. De acordo com Roberto Leal Lobo e Silva, citado no artigo “Engenharia em construção”, publicado na edição da revista FAPESP de março de 2022, na segunda metade dos anos 2000, com a criação do Programa de Aceleração do Crescimento, havia o temor de que se o país continuasse a crescer 4% ao ano, não haveria engenheiros suficientes para dar conta da demanda de profissionais que atuassem entre outras, nas obras de infraestrutura que então estavam a todo vapor, embaladas pelo dinheiro proporcionado pelo boom das commodities.
Como sabemos, o apagão foi evitado não porque houve um esforço para a formação dos profissionais de que o Brasil necessitava, mas simplesmente porque o crescimento econômico diminuiu muito: o pico de aumento do PIB obtido em 2010, de 7,5%, jamais foi atingido depois, e a última vez em que tivemos 4% de aumento no PIB foi em 2011. Quanto à formação dos profissionais que poderiam satisfazer a demanda gerada pela expansão das atividades econômicas, ela definitivamente ficou para as calendas. Para citar novamente o artigo da revista FAPESP: “Em 2019, segundo o último Censo da Educação Superior no Brasil, os cursos de engenharia, produção e construção registraram 1.225,243 novas matrículas: 869.781 na rede privada e 355.462 na rede pública.” Em estudo realizado pela Confederação Nacional da Indústria, cobrindo o período de 2001 a 2011, a média de evasão ficou em mais de 60% nos cursos pagos e passou de 40% nas instituições públicas.
Em suma, o PROUNI permitiu que os “meninos da periferia”, conforme a definição de Lula, conquistassem o direito ao ensino superior, mas a conquista desse direito ficou longe de proporcionar os engenheiros de que o país precisa para inovar e empreender e assim gerar valor. O foco na concessão de direitos sem contrapartidas em termos de demonstração de conhecimento por parte dos alunos fez com que o PROUNI não oferecesse o salto de qualidade na educação que é um dos requisitos para que nossa economia seja mais produtiva e assim cresça de maneira sustentável. Nesse sentido, a democratização do ensino sem critérios de avaliação é ineficiente e portanto injusta, à luz da ordem liberal proposta por Rawls.
Prezados leitores, quando assistirem ao próximo debate dos presidenciáveis e ouvirem as propostas dos candidatos, tentem analisar seu custo-benefício não do ponto de vista estritamente monetário do quanto custa, mas do ponto de vista dos benefícios que elas trazem a todos os membros da sociedade. Tenho certeza que em assim fazendo derrubarão muitos véus de mistificação colocados pela retórica populista tão em voga na nossa democracia.