A teoria geocêntrica tinha se encaixado razoavelmente bem em uma teologia que supunha que todas as coisas tinham sido criadas para uso do homem. Mas agora os homens se sentiam jogados de lá para cá em um planeta menor cuja história estava sendo reduzida a “uma mera notícia local do universo”. […] Só havia uma única proteção contra tais homens, e era que somente uma pequena minoria em uma geração reconheceria as implicações do seu pensamento. O sol irá “levantar-se” e “pôr-se” quando Copérnico tiver sido esquecido.
Trecho retirado do livro “A Reforma” do filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981)
As pessoas dão ouvidos a um astrólogo arrivista que se esforçou para mostrar que a Terra gira, não os céus ou o firmamento, o Sol e a Lua … Esse imbecil quer colocar de cabeça para baixo todo o esquema da astronomia; mas as Sagradas Escrituras nos dizem que Javé mandou que o Sol permanecesse parado, não a Terra.
Comentário de Martinho Lutero (1483-1546), monge agostiniano e um dos líderes da Reforma Protestante, sobre Nicolau Copérnico
O candidato pelo PDT, Ciro Gomes, afirmou que quer vencer a eleição para poder discutir o modelo econômico. “Esta é a razão pela qual eu, pela quarta vez, tento ser presidente do Brasil. Claro que desta vez chega. Porque se eu não ganho agora, vou botar a viola no saco, porque eu virei o grilo falante, o chato, o destemperado, porque falo números” – afirmou.
Trecho retirado do artigo “50s de propaganda na TV e o adeus melancólico do ‘grilo falante’, citando a fala do candidato à Presidência, Ciro Gomes, na entrevista dada ao programa Roda Viva de 15 de agosto
Prezados leitores, no artigo “A revolução dos astros e dos filósofos” eu abordei a teoria heliocêntrica do astrônomo Nicolau Copérnico (1473-1543) para exemplificar o modo pelo qual ocorrem as mudanças nos paradigmas científicos, de acordo com o filósofo americano Thomas Kuhn (1922-1996). O astrônomo polonês não fez grandes observações astronômicas, mesmo porque ele não tinha telescópio, tendo se valido em grande parte das observações de Cláudio Ptolomeu (90-168) de Alexandria, cuja teoria geocêntrica era a que então vigia. Assim, o que fez a comunidade científica ao final aceitar a substituição do sistema ptolemaico não foi um acúmulo de constatações experimentais que levaram gradual e certamente ao sistema copernicano. Na verdade, foi preciso que a comunidade científica se deixasse convencer de que a hipótese de que a Terra girava em torno do Sol salvava melhor as aparências, isto é, explicava melhor os fenômenos naturais de maneira mais simples do que o sistema de Ptolomeu, e era mais útil, pois permitia um melhor cálculo da duração do ano.
Assim a teoria heliocêntrica foi adotada amplamente, abrindo os caminhos que seriam trilhados por Johannes Kepler (1571-1630), Galileu Galilei (1564-1642) e Isaac Newton (1642-1727). Além disso, conforme a descrição que Will Durant faz das contribuições de Nicolau Copérnico à ciência e que abrem este artigo, a mudança de paradigmas deu-se também na dimensão filosófica e teológica. Se a Terra era apenas o quarto dos planetas que completavam uma órbita em torno do sol em um tempo relativamente curto, em comparação com os 30 anos de Saturno ou os 12 anos de Júpiter, como acreditar que Deus tinha enviado seu Filho, Jesus Cristo, para morrer neste planeta medíocre? Se a Terra não era o centro do mundo, ficava mais difícil continuar a conceber Deus da maneira provinciana e antropomórfica que a religião cristã preconizava.
É nesse sentido que Will Durant considera que o sistema de Copérnico teve uma influência muito mais revolucionária do que a Reforma Protestante. Nos séculos XV e XVI as disputas entre católicos e protestantes giravam em torno de questões bizantinas, como por exemplo se o corpo e o sangue de Jesus Cristo estavam de fato presentes na hóstia ou se o homem tem livre arbítrio para decidir entre o bem ou o mal ou se já está predestinado a arder no Inferno ou a usufruir da graça de Deus. Nenhum debate a respeito delas poderia chegar a uma conclusão que fosse aceita por todos, porque não era possível estabelecer um meio de verificação das proposições que não fosse pela referência às próprias premissas dos argumentos defendidos, e tais premissas eram violentamente contestadas. Sob uma perspectiva histórica, as discussões teológicas que absorviam tantos homens de intelecto não contribuíram em nada para o salto intelectual dado pelo Homem Ocidental rumo à investigação desassombrada da Natureza. Afinal, como mostra o comentário de Martinho Lutero sobre Copérnico que abre este artigo, a ciência não era a preocupação central dos homens que defendiam ardentemente a reforma do cristianismo corrompido pelo poder e pela riqueza da Igreja Católica. A ênfase deles nas Escrituras, como textos inspirados diretamente pelo Espírito Santo, as alçavam acima de qualquer teoria que tentasse explicar os mecanismos do Universo. Onde as teorias se chocassem com a literalidade da Bíblia, esta tinha a palavra final, pois ela era a palavra de Deus.
Ao colocar o Homem como habitante de um pequeno planeta que faz parte de um Cosmos muito maior, a revolução de Copérnico abriu as portas, para aqueles que conseguiram ver suas implicações, ao Iluminismo do século XVIII e ao agnosticismo do século XIX. À pequena elite pensante não era mais possível aceitar o conteúdo proposicional da religião cristã, isto é, o que ela, inspirada pelas narrativas bíblicas, dizia a respeito da criação do Mundo e do Homem. Por outro lado, para a maior parte do povo que nunca leu “De revolutionibus orbium coelestium”, o Sol continuava a nascer e a morrer e Nicolau Copérnico foi apenas mais um homem que do pó viera e ao pó retornou, em 24 de maio de 1543, no mesmo dia em que viu uma cópia impressa de sua obra-prima.
A discrepância entre o impacto daquilo que Nicolau Copérnico pensou e escreveu sobre o desenvolvimento da ciência e sobre as crenças da maioria das pessoas nos faz lembrar da figura do grilo falante, o companheiro de Pinóquio no desenho animado que funciona como uma espécie de consciência moral do boneco: o grilo falante continua a falar porque é seu dever alertar seu amigo sobre os perigos do seu comportamento. Se todos tivessem atentado para as lições de Copérnico, as autoridades religiosas teriam se limitado a ponderar sobre a ética e a moral e se absteriam de considerar a Bíblia como fonte de conhecimentos sobre a física e a biologia, como fizeram para confrontar Galileu, Giordano Bruno (1548-1600) e Charles Darwin (1809-1882). Ao final, esse comportamento revelou-se fatal para a religião cristã, que perdeu a credibilidade intelectual por insistir em confrontar seu conteúdo proposicional ao da ciência e acabou com isso perdendo autoridade para ditar normas às pessoas sobre como se comportar umas com as outras para que a sociedade pudesse funcionar de maneira civilizada.
Prezados leitores, à luz dessa descrição da dimensão profética do grilo falante, não é pertinente a descrição que Ciro Gomes faz de si mesmo, em tom jocoso, nessas eleições, conforme mostrada na abertura deste artigo? Num ambiente em que um dos principais acontecimentos da campanha até agora foi o comparecimento de Lula a um culto africano, considerado demoníaco pela primeira-dama, Michelle Bolsonaro, detalhar propostas sobre como criar empregos, aumentar investimentos públicos, atacar o déficit fiscal, financiar a previdência não é bancar o grilo falante? Algum eleitor quer saber disso? Algum eleitor acha isso relevante o suficiente para determinar seu voto? Ou queremos só ver vídeos e memes de desqualificação mútua dos candidatos?
Em 1581, foi erguido um monumento em homenagem a Copérnico na Catedral de Frauenburg, que em 1746 foi removido para dar lugar à estátua de um bispo. Talvez um dia, no Brasil, façamos uma homenagem ao nosso grilo falante que falava sobre assuntos prementes que precisavam ser resolvidos para que pudéssemos evitar mais desastre social e econômico. Ou então nem essa singela lembrança ele terá. A esperança é que suas ideias, em que pesem não significarem nada para a maioria dos eleitores, possam influenciar alguns poucos que pensam sobre os rumos do país, chacoalhado pelos radicalismos.