À medida que resumimos agora a ciência, a pedagogia e a filosofia da Europa Ocidental nos séculos catorze e quinze, devemos lembrar que os estudos racionais tinham que lutar por espaço e oxigênio em uma floresta de superstições, intolerância e medo.
Treco retirado do livro “A Reforma” do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981)
A biologia, a física e a geologia, eles [alguns críticos da religião] afirmaram, somente fizeram o rápido progresso que fizeram quando foram libertados de um contexto de crença religiosa pelo filósofo do século XVII René Descartes, que formulou um mito metafísico da separação entre a mente e o corpo.
Trecho retirado do verbete sobre Filosofia da Religião da edição de 1974 da Enciclopédia Britânica
De acordo com Aristóteles, a especulação sobre os números é a característica mais marcante do pitagorismo. As coisas “são” números, ou se “parecem” com números. Para muitos pitagóricos, esse conceito significava que as coisas são mensuráveis e comensuráveis ou proporcionais em termos de número – uma ideia de considerável importância para a civilização ocidental.
Trecho retirado do verbete sobre pitagorismo da edição de 1974 da Enciclopédia Britânica
Ao mesmo tempo, ele considerava o reino espiritual como detentor de uma realidade psicológica que não pode ser minimizada e certamente não da maneira sugerida por Freud. Jung postulava, além do inconsciente pessoal (mais ou menos da mesma maneira que Freud), o inconsciente coletivo, que é o repositório da experiência humana e que contém “arquétipos” (isto é, imagens básicas que são universais pelo visto de serem recorrentes em culturas independentes). A irrupção dessas imagens do inconsciente na consciência ele considerava como a base da experiência religiosa e frequentemente da criatividade artística.
Trecho retirado do verbete sobre o Estudo da Religião da edição de 1974 da Enciclopédia Britânica
Prezados leitores, no seu esforço de descrever o contexto cultural em que ocorreu a Reforma Protestante, Will Durant tem um capítulo dedicado aos mágicos, em que ele dá detalhes sobre a mentalidade pouco propícia à investigação da natureza com base nas evidências, o que basicamente caracteriza a ciência praticada atualmente. Conforme mostra o primeiro trecho que abre este artigo, o uso desassombrado da razão para explicar os fenômenos era muito prejudicado pela precariedade da vida em uma época de pouca tecnologia: as fomes, as pragas e as guerras que surgiam e desapareciam de maneira inesperada levavam o homem a encarar a Natureza com medo e para diminuir seus temores e achar uma solução para os problemas, recorria à explicação de que forças ocultas precisavam ser aplacadas de forma que o homem pudesse ter algum alívio existencial. Aplacar essas forças significava recorrer a expedientes mágicos que pudessem fazer frente, pelo poder que colocavam em marcha, ao poder misterioso delas. Eles incluíam a necromancia, a leitura das mãos, a observação do movimento dos astros, a numerologia, a bruxaria, as profecias, adivinhações, as conjunções estelares portentosas, as curas miraculosas, as transmutações químicas. Todos esses expedientes pressupunham a crença absoluta na sua eficácia, crença essa incólume às evidências factuais, justamente porque respaldada em uma concepção religiosa do mundo, em que o bem lutava contra o mal.
Daí que foi preciso que essas superstições e crendices fossem abandonadas para que as ciências pudessem se desenvolver, tal como descrito no segundo trecho que abre este artigo. Só livre dessa estrutura mental, em que tudo estava conectado por uma narrativa religiosa, é que o homem ocidental cristão começou a utilizar sua razão de maneira científica, isto é, de maneira a ver os fenômenos naturais em si mesmos e a tentar explicá-los em si mesmos sem recorrer a forças sobrenaturais onipresentes. E assim, rebelando-se contra os pré-conceitos derivados da religião, ele embarcou na jornada científica que causou uma revolução tecnológica e nos colocou em um nível inédito de conforto material, jamais visto na história da Humanidade. Como disse o físico americano Lawrence Krauss (1954-) em uma palestra dada em abril de 2012 na Universidade Nacional da Austrália juntamente com o biólogo britânico Richard Dawkins (1941- ), ambos ateus militantes, a diferença entre a religião e a ciência é que a ciência funciona: ela nos dá carros que andam e – acrescentaria eu – fogões que cozinham e celulares que transmitem mensagens. Os benefícios da religião definitivamente não são tão palpáveis.
E no entanto, não foi sempre que religião e ciência estiveram em campos opostos. A investigação para achar a causa dos fenômenos naturais e explicá-los foi feita antes do advento do cristianismo na Grécia por homens que tinham um pé na razão e outro nos mistérios do mundo. Um deles é Pitágoras de Samos (570 a.C. – 495 a.C.), a quem conhecemos por ter dado nome ao teorema da geometria que estabelece uma relação matemática entre os lados de um triângulo retângulo. Conforme o terceiro trecho que abre este artigo, Pitágoras introduziu uma noção que seria de fundamental importância para o desenvolvimento da ciência ocidental, a de que o mundo só pode ser entendido se acharmos os números nas coisas e uma vez revelada a estrutura numérica nós adquirimos controle sobre o mundo. De acordo com Bertrand Russell, a concepção moderna de ciência é fundada na ideia de que as coisas são números. Sem ela, não teríamos a física e suas equações.
Por outro lado, ainda segundo o mesmo Russell, Pitágoras diferenciou-se pelo fato de mostrar um interesse puro na matemática, não ditado por necessidades práticas, como ocorria no Egito, por exemplo. E aqui revela-se a outra dimensão dos esforços intelectuais do filósofo grego. A escola pitagórica era também uma seita religiosa, cujos membros praticavam rituais de iniciação, seguiam regras de vida e tomavam alucinógenos para terem experiências religiosas que os colocavam em contato com a unidade do cosmos. Sob essa perspectiva, os números não eram simplesmente instrumentos para descrever e entender a realidade, mas símbolos que, ao estabelecer relações numéricas, permitiam aos iniciados no culto abrir-se à harmonia e à ordem transcendentes. Os pitagóricos elaboraram a primeira escala musical no Ocidente usando a ferramenta da matemática para terem acesso a uma experiencia mística por meio da música tocada da maneira ditada pela escala proporcional que haviam inventado.
Essa união entre experiência religiosa e busca da verdade acabou perdendo-se no Ocidente depois do advento do cristianismo. A forma como os dogmas da Igreja Católica foram estabelecidos e impostos pelas autoridades eclesiásticas, por meio do medo e da coação típicos do exercício do poder absoluto, fez com que a investigação do mundo só pudesse ocorrer pelo uso do argumento de autoridades sancionadas pela Igreja, ou de superstições que serviam para encher as pessoas de temor reverencial e fazê-las render-se ao poder da religião para consolar o homem do sofrimento e da miséria onipresentes. No entanto, não ajudavam muito para tornar essa investigação eficaz e fazê-la funcionar da maneira como a ciência é capaz atualmente, produzindo resultados concretos pela tecnologia. E assim foi preciso que para a ciência florescer a religião teve que perecer, ao menos para pessoas com curiosidade intelectual, como Lawrence Krauss e Richard Dawkins.
Se formos tirar lições do pensamento do psicanalista suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) tal separação entre ciência e religião é algo a se lamentar. Conforme mostrado no quarto trecho que abre este artigo, as investigações de Jung sobre a psiquê humana o levaram a desenvolver a ideia de que todos nós, enquanto homo sapiens, compartilhamos imagens arquetípicas que desempenham um papel fundamental na mente: carregadas de significados, essas imagens viabilizam a constituição da personalidade do indivíduo, pois lhe oferecem símbolos que remetem ao mistério da condição humana e ao significado das coisas. Nesse sentido, os arquétipos desempenham um papel religioso, estabelecendo uma narrativa que explica a origem e a criação do mundo, e um papel artístico, pois permitem ao homem usar símbolos para chegar a significados profundos sobre a natureza da existência.
Prezados leitores, será que a recuperação por Jung da dimensão espiritual do homem por meio dos arquétipos algum dia permitirá uma nova síntese de religião e ciência? Ou será que elas estarão sempre em campos opostos no Ocidente com os ateístas defendendo-se das religiões monoteístas, como ocorre atualmente? Diante da possibilidade de que a humanidade não consiga sobreviver ao século XXI devido ao esgotamento dos recursos naturais e ao perigo nuclear seria bom que os investigadores da alma e os investigadores da natureza chegassem a uma entente, porque a salvação material do homo sapiens só poderá vir da boa vontade de todos em prol do bem comum, o que requer um compartilhamento de valores éticos e um comprometimento sincero em colocá-los em prática. Aguardemos.