Ela havia começado com a profunda sinceridade e a devoção de Pedro e Paulo; ela cresceu como um sistema majestoso de disciplina, ordem e moralidade familiar, escolástica, social e internacional; agora ela estava degenerando em um interesse arraigado, absorvido na autoperpetuação e no autofinanciamento. […] Os cardeais eram escolhidos raramente por sua devoção, normalmente por causa da sua riqueza ou conexões políticas ou capacidade administrativa; eles viam-se a si mesmos não como monges que carregavam o ônus dos votos, mas como senadores e diplomatas de um estado rico e poderoso; em muitos casos eles não eram padres; e eles não deixavam que seu chapéu vermelho impedisse que desfrutassem a vida. A Igreja esqueceu a pobreza dos Apóstolos diante das necessidades e das despesas do poder.
Trecho descrevendo a Igreja Católica no século XIV retirado do livro “A Reforma” do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981)
O Sr. Macron também às vezes afasta os eleitores com seu jeito indiferente e jupiteriano. Os críticos o denominam “o presidente dos ricos”. A alcunha cola, em parte porque ele cortou o impraticável imposto sobre a riqueza na França, mas em grande parte porque seu estilo é o do banqueiro pretensioso e ambicioso que ele era.
Trecho retirado do artigo “Por que Macron importa”, publicado na edição de 9 de abril da revista The Economist
Prezados leitores, o que têm em comum a elite financeira global que dá as cartas no Ocidente neste início do século XXI e os príncipes da Igreja do século XIV, às vésperas da Reforma Protestante? Meu objetivo nesta semana é traçar alguns paralelos com as figuras cosmopolitas e poderosas de antes com as de agora, valendo-me da descrição que Will Durant faz do estado lamentável em que se encontrava a Igreja Católica quando começaram as críticas de intelectuais, devotos católicos e reis europeus que culminaram no cisma da Igreja no Ocidente, com o surgimento da Igreja Anglicana, da Igreja Calvinista e da Igreja Luterana no início da Idade Moderna.
Em seu livro, A Reforma, que trata da história da civilização europeia fora da Itália no período entre 1300 e 1564, Will Durant descreve a transformação por que passou a Igreja Católica, conforme o trecho que abre este artigo: uma instituição que foi fundada na ética dos apóstolos que seguiram os preceitos de Cristo e sacrificaram sua vida em prol deles chegou ao auge no século XI, quando desempenhava funções essenciais à sociedade: era a fonte da moral, permitindo a manutenção da ordem social, era a fonte do direito internacional, resolvendo em última instância disputas entre os soberanos europeus e era fonte de cultura, pois suas escolas formavam a elite intelectual que governava os países e os intelectuais católicos tiveram papel fundamental na preservação do legado da Antiguidade Clássica. À guisa de exemplo, São Tomás de Aquino (1225-1274), doutor da Igreja, utilizou a filosofia aristotélica para criar seu próprio sistema fundado no dogma cristão e elaborar seus cinco argumentos provando a existência de Deus. Em assim fazendo garantiu o predomínio da filosofia de Aristóteles no Ocidente de maneira completa e permanente até o advento do Humanismo no século XIV.
Dotada do poder de ditar as normas éticas, as normas jurídicas e a maneira de pensar das pessoas, a Igreja Católica foi acumulando ao longo da Idade Média uma influência muito grande em todas as áreas que acabou levando-a por caminhos dúbios, pois como diz Durant, a proposta espiritual da instituição religiosa esbarrou na natureza dos homens que a administravam e que acabaram inebriados pelo poder que pertencer à Igreja lhes dava. O modo como os cardeais eram escolhidos e como se comportavam era emblemático a esse respeito: o que se procurava no indivíduo convocado a ser príncipe da Igreja não era sua devoção sincera aos preceitos de Cristo, mas sua capacidade de transitar bem no mundo das cortes europeias, celebrando alianças, negociando acordos de trégua e até comandando expedições militares financiadas pelas exações impostas pela Igreja aos fiéis. Cesare Borgia (1475-1507), foi nomeado cardeal aos 18 anos e ajudou seu pai, o Papa Alexandre VI (1431-1503), a aumentar a área dos Estados Papais, obtendo vitórias na Romanha, na península itálica. Enfim, a tarefa de um cardeal não era guiar seu rebanho rumo a uma vida de imitação de Cristo, mas a de agir para aumentar o poder da Igreja de forma que como instituição internacional que era, sua capacidade de ditar o rumo dos acontecimentos estivesse sempre acima daquela dos soberanos europeus.
Assim, cultivando cardeais que benziam canhões e usufruíam da boa vida que a posição no topo da hierarquia católica lhes dava, a Igreja foi acumulando contra si ressentimentos. Ressentimento dos governantes do Norte da Europa, que viam que o dinheiro arrecadado ia todo para Roma e nada ficava nas Igrejas locais, sendo usado pelos papas para financiar suas ambições territoriais; ressentimento dos católicos devotos que se indignavam com o luxo e a vida de prazeres e lassidão moral vivida pela alta hierarquia da Igreja; ressentimento de filósofos como Guilherme de Ockham (1285-1347), que considerava que a Igreja não era o clero, mas a comunidade dos fiéis, e que esta comunidade tinha o poder soberano de delegar sua autoridade para um conselho geral de bispos e abades que escolheria, puniria ou deporia o papa.
Esse acúmulo de ressentimentos ao longo de séculos diante dos abusos perpetrados pela Igreja Católica culminou com a Reforma do século XVI, o que abalou a instituição internacional que fundamentava seu poder político na autoridade moral e espiritual conferida por Jesus Cristo a Pedro, o primeiro papa. O surgimento de igrejas cristãs nacionais submetidas ao poder secular do governo dos respectivos países privou a Igreja Católica da sua primazia no Direito Internacional, pois o reconhecimento da soberania do governante local dava-lhe o poder discricionário de recusar a interferência da Igreja nas disputas entre Estados. Desse modo, a Reforma enfraqueceu a atuação supranacional da Igreja, privando-lhe do poder, exercido pelos seus príncipes, de ditar regras a todos e de impor consensos.
É neste ponto que pretendo traçar um paralelo entre os agentes do internacionalismo no século XIV, conforme descritos por Durant, e os agentes do internacionalismo no século XXI, que atualmente não são os cardeais com seu chapéu púrpura, mas os banqueiros vestidos de ternos bem cortados como Emmanuel Macron, o presidente da França reeleito no dia 24 de abril que, antes de tornar-se político fez fortuna trabalhando na filial francesa do Banco Rothschild. Na qualidade de sócio do Rothschild, Macron foi responsável, entre outras operações societárias, pela aquisição bem-sucedida de uma filial da Pfizer pela Nestlé em 2012, no valor de 12 bilhões de euros.
Macron, portanto, é um homem que transita bem nas altas esferas do poder das multinacionais e não é de admirar as medidas que tomou durante a pandemia de COVID, tornando a vacinação obrigatória na França por meio do passe vacinal e prometendo, em entrevista dada ao jornal Le Parisien em 4 de janeiro, de tornar a vida dos não vacinados um inferno, pois segundo o presidente francês eles não podem ter a liberdade de prejudicar os vacinados, colocando a saúde destes em risco.
Será que a postura de Macron foi ditada pelo interesse dos franceses ou pelo interesse da indústria farmacêutica de garantir um mercado cativo para seus produtos, vendidos em toda a Europa? A dúvida é pertinente, considerando que hoje se sabe que os vacinados transmitem a doença da mesma maneira que os não vacinados (para que não me acusem de propagadora de fake news, consultem o artigo publicado na revista The Lancet em janeiro de 2022 e disponível na internet intitulado “Transmissibility of SARS-CoV-2 among fully vaccinated individuals”. Considerando que quando Macron deixar a presidência da França ele terá míseros 50 anos, não é descabido pensar que ele possa voltar a ser sócio de algum banco de investimentos e portanto cultivar suas relações com grandes conglomerados internacionais pode ser uma acertada decisão para sua futura transição de carreira.
Conforme mencionei neste humilde espaço na semana passada, o filósofo francês Michel Onfray define Macron como o executor do consenso de Masstricht na França, isto é, o líder político responsável por implantar os ideais globalistas da União Europeia no nível local, independentemente do interesse da população local. Um exemplo prático disso, conforme relatado pela The Economist, ocorreu durante a campanha presidencial de 2017, quando Macron reuniu-se em Amiens, sua cidade natal, com os trabalhadores da fábrica da Whirlpool que havia sido fechada e transferida para outro local na Europa com custos menores de produção.
O banqueiro tornado político e acostumado ao grand monde das finanças internacionais nem fez questão de pretender ter uma solução para ajudar os franceses lá desempregados pelo encerramento das atividades da Whirlpool. Era preciso aceitar o fato inelutável da globalização e prometer salvar-lhes o emprego era demais, era populismo barato e Macron é um intelecto sofisticado demais para isso. Ele não pode dar conforto material e espiritual ao proletariado francês, viúvo da desindustrialização, pois a tarefa dele é maior, é garantir que as engrenagens da União Europeia, a promotora da livre circulação de produtos e serviços a bem da eficiência econômica, funcione sem atropelos no país o qual ele foi escolhido para governar.
Prezados leitores, será que os príncipes do século XXI terão o mesmo destino dos seus congêneres do século XIV? Será que banqueiros como Emmanuel Macron que executam o projeto globalista da União Europeia terão o mesmo destino dos cardeais que zelavam pelo poder da grande instituição internacional de então, a Igreja Católica? Será que haverá uma reação dos governos nacionais como houve há 700 anos? Aguardemos, e enquanto isso, admiremos o aplomb, o cosmopolitismo e a sofisticação de figuras como o presidente francês.