Eu não votei no primeiro turno porque eu considero que os dados estão viciados.
Trecho de entrevista dada por Michel Onfray, filósofo francês, à rádio RMC sobre as eleições presidenciais na França, vencidas por Emmanuel Macron
Toda abstenção reforça o poder
André Bercoff, jornalista, escritor e ensaísta franco-libanês e um dos apresentadores da rádio Sud Radio
Prezados leitores, o voto deve ser obrigatório ou facultativo? No Brasil os bem pensantes consideram que o voto obrigatório é um contrassenso em um regime democrático, pois deveria ser um direito e não uma obrigação, além do que nos países desenvolvidos o voto é facultativo, o que reforça o argumento em favor de tornar o voto opcional. Como tem acontecido muito em nosso país, o Judiciário legisla sutilmente no lugar do Congresso Nacional também na seara do direito eleitoral. Na prática, ele tem flexibilizado a regra da obrigatoriedade do voto no Brasil, consagrada na Constituição, tornando o processo de justificação da abstenção cada vez mais fácil: nas últimas eleições, o Tribunal Superior Eleitoral colocou à disposição dos brasileiros um aplicativo para isso, que podia ser baixado no celular. Dessa forma, comendo pelas beiradas, nosso Judiciário está tornando o voto facultativo, porque seus membros consideram que essa é a visão que deve prevalecer em uma democracia moderna, em que a participação nas eleições deve ser um exercício de liberdade e não de coação.
Tal liberdade de se abster foi exercida com bastante intensidade nas eleições presidenciais francesas, que neste domingo dia 24 de abril tiveram o segundo turno. O presidente Emmanuel Macron conseguiu um segundo mandato, a despeito do fato de que dos 48,7 milhões de franceses que têm o direito de voto, 14 milhões deles decidiram não exercê-lo, uma taxa de abstenção de 28,01%, maior que a verificada há cinco anos, quando os mesmos candidatos, Macron e Marine Le Pen, chegaram à disputa final. Esse direito de ignorar o acontecimento que seria o ápice da democracia é defendido na França por pessoas como Michel Onfray, citado na abertura deste artigo, recorrendo a uma metáfora sobre os dados viciados que requer uma explicação.
Para Onfray, o atual regime político na França não oferece nenhuma opção real, pois desde 1992 quando foi assinado o Tratado de Maastricht, que instituiu a União Europeia e estabeleceu a livre circulação de pessoas e produtos, os países-membros da EU perderam sua soberania de forma que os líderes políticos que são escolhidos nos respectivos países têm um poder limitado àquilo que o Direito Comunitário lhes concede em termos de competência, que nada mais é do que implementar no nível nacional as diretivas federais que regulam a organização e o funcionamento da União Europeia. Na visão de Onfray, o presidente da França nada mais é do que um comissário da EU e é nesse sentido que os dados estão viciados: o povo percebe que o presidente que elegem pode prometer mundos e fundos, mas na prática não têm poder real nenhum, porque a política monetária é decidida pelo Banco Central Europeu e assim o orçamento público utilizado para concretizar aquilo que o líder eleito estabelece como seu programa de governo fica engessado por aquilo que o BCE estabelece em termos de taxas de juros, metas de inflação, valor da moeda e possibilidade de endividamento.
Para que votar se qualquer candidato escolhido, à esquerda ou à direita terá de se submeter ao “consenso de Maastricht”, como define Onfray? Para que se dar ao trabalho de ir às urnas e na prática fazer o papel de palhaço que dá chancela democrática a escolhas que já foram feitas antes em Bruxelas e a portas fechadas pelo grupo de tecnocratas que dirige a União Europeia? Não é melhor abster-se a participar da farsa e mostrar aos donos do poder que o cidadão sabe o que está ocorrendo? Mostrar que o cidadão sabe que o jogo é de cartas marcadas ou de dados que ao serem jogados dão sempre o mesmo resultado, isto é, a supremacia do interesse supranacional sobre o interesse de cada país europeu?
Onfray considera que o regime agora em vigor na França é totalitário, na medida em que não permite nenhuma deriva dos princípios dogmáticos e a trajetória de Marine Le Pen ilustra a camisa de força a que todos os políticos precisam se submeter se querem ter alguma viabilidade eleitoral: se em sua primeira campanha presidencial, em 2012, Marine colocava-se firmemente contra a moeda única e o projeto federalista da União Europeia, a cada derrota ela foi diluindo sua mensagem radical para se tornar palatável aos autores do consenso e provavelmente sua terceira derrota a fará abandonar ainda mais sua ideias mais radicais sobre a soberania francesa, com a esperança de que um dia ela se torne plenamente aceitável e mainstream.
Onfray não votou nem no primeiro turno e nem no segundo turno e fez questão de dizer isso publicamente, expondo as razões da sua escolha, inclusive a quem é contra o abstencionismo e o voto em branco, como André Bercoff, citado na abertura deste artigo. Ao longo da campanha presidencial de 2022 Bercoff incitava seus ouvintes na Sud Radio a não deixar de votar, conclamando-os a escolher o menos pior, mas escolhendo de toda forma. Pois mesmo que as opções sejam entre a peste e a cólera, para o jornalista franco-libanês a não participação dos cidadãos no processo eleitoral só piora as coisas, porque facilita a manutenção do status quo, reforçando o poder dos empoderados, que sempre podem contar com o voto dos seus apoiadores mais extremados e assim conseguem se eleger com uma minoria de votos, por obterem a maioria dos votos válidos. Bercoff inclusive defende que a revitalização da democracia na França requer que o voto se torne obrigatório, pois do contrário o círculo vicioso não será quebrado: quanto mais abstencionismo houver, mais os líderes políticos se sentirão confortáveis por saberem poder contar com seu grupo de apoiadores para se eleger, e assim menos contas prestarão à população, que por sua vez ficará mais desencantada com os resultados da democracia e menos inclinada se mostrará a participar do processo eleitoral.
Prezados leitores, desde 2002 quando Jean-Marie Le Pen, o pai de Marine Le Pen, disputou o segundo turno contra Jacques Chirac, os eleitores franceses vêm sendo submetidos à polarização, isto é, à escolha entre a peste a cólera, e a classe política está cada vez mais desacreditada, como mostram os protestos que se seguiram à reeleição de Macron em várias cidades do país. Será que nós no Brasil seguiremos o mesmo destino, e estaremos fadados a escolher por anos a fio entre extremos que de tão distantes acabam se juntando e se tornando iguais na qualidade do que oferecem ao povo? Será que estaremos submetidos eternamente ao consenso de Washington, conforme tenho humildemente explicado neste espaço a política de austeridade monetária e fiscal que é a única política aceita, da mesma forma que o consenso de Maastricht é a unanimidade na Europa? Ai de nós, eleitores empesteados ou encolerizados!