“A definição ostensiva” pode ser definida como “qualquer processo pelo qual a pessoa é ensinada a entender uma palavra de outra maneira que não seja pelo uso de outras palavras.”. […] as palavras que têm definições ostensivas frequentemente denotam características recorrentes do ambiente, tais como membros da família, comidas, brinquedos, animais de estimação, etc. […] A linguagem, desde o início, ou melhor, desde o início da reflexão sobre a linguagem, corporifica a crença em pessoas ou coisas mais ou menos permanentes.
Trecho retirado do livro “Human Knowledge – Its Scope and Limits” do filósofo e matemático inglês Bertrand Russell (1872-1970)
Senadora do Estado do Tennessee Marsha Blackburn: Você consegue dar uma definição de mulher?
Juíza Ketanji Brown Jackson: “Não neste contexto, Eu não sou uma bióloga.
Diálogo ocorrido na sessão de sabatina da candidata à juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos em 23 de março
[…] nós como humanos, não somos deuses nem oráculos. Só temos uma maneira de tentar alcançar a verdade: apresentar hipóteses e ideias, e depois avaliá-las, refutando aquelas que se mostram erradas. Se algumas ideias não podem nem mesmo ser expressadas, e outras não podem ser questionadas, então estamos desabilitando nosso mecanismo principal de chegar à verdade.
Trecho da entrevista dada pelo psicólogo Steven Pinker, catedrático da Universidade Harvard à revista VEJA de 30 de março
Prezados leitores, no livro mencionado na abertura deste humilde artigo Bertrand Russell propõe-se a investigar as características da linguagem natural para determinar que tipo de conhecimento é acessível ao homem. Para tanto, ele começa com as palavras que têm uma definição ostensiva, isto é, palavras cujo sentido pode ser explicado simplesmente mostrando à pessoa que está aprendendo a língua a que o termo se refere. Russell dá detalhes desse processo descrevendo o modo pelo qual as crianças aprendem a falar e como os adultos as ensinam. Podemos tomar como exemplo a palavra mulher.
Para que a criança aprenda o que é uma mulher, é preciso que o adulto repita a palavra toda vez que a criança está em presença de um indivíduo que apresenta uma característica distintiva, facilmente observável, recorrente e emocionalmente interessante, de forma que com o tempo a criança adquira o hábito de associar o substantivo mulher a todos os seres humanos que apresentam um grau de semelhança que pode ser estabelecido imediatamente. Dessa forma, o sentido das palavras com definição ostensiva é obtido pelo reconhecimento sensorial de por parte do falante da língua que, depois de ser exposto inúmeras vezes à mesma experiência de ouvir o substantivo mulher ser utilizado para se referir a uma espécie com determinados atributos, aprende finalmente a fazer por si mesmo a associação entre o nome e o referente e a considerar isso como algo permanente.
Nesse sentido, não é mera coincidência que a noção filosófica de substância, isto é, de natureza essencial esteja associada aos substantivos ou nomes da língua. Conforme explica o trecho que abre este artigo, a língua tem uma série de premsisas e entre as mais importantes está a de que certas coisas não mudam, são estáveis: qualquer falante da língua reconhecerá um cachorro, uma mulher, uma árvore. Falar que uma mulher é um significante utilizado para se referir a uma série de impressões sensíveis conectadas por uma similaridade e relações causais, mas sem identidade material, pode ser mais apropriado do ponto de vista estritamente empírico, mas não faz parte das regras do jogo do falante nativo da língua: para ele, o significado de mulher é óbvio ululante e basta ele apontar para um indivíduo do sexo feminino na rua que o sentido do substantivo ficará imediatamente cristalino.
E no entanto, em pleno século XXI, ao menos nos Estados Unidos, as definições ostensivas estão sendo postas à prova, como mostra o diálogo entre a senadora do Tennessee e a a juíza que acabou sendo confirmada como nova ministra da Suprema Corte dos EUA. O significado de mulher não é mais o que costumava ser quando nós crianças aprendemos a associar o substantivo a indivíduos com características biológicas femininas, isto é, seios, poucos pelos, quadris mais largos que os dos homens. Tanto é assim, que Ketaji Jackson recusou-se a responder à pergunta sobre o que é uma mulher, pois o que era óbvio ululante passou a ser objeto de disputa ideológica, disputa esta que a juíza reconhece pela sua resposta.
Afinal, se é preciso recorrer a um biólogo para uma definição do que é mulher, isso significa que não é mais possível a um mero falante da língua explicar o significado de mulher simplesmente apontando na rua um indivíduo: existem pessoas que têm características biológicas do sexo masculino e no entanto, se identificam como mulheres, se vestem como mulheres ou se comportam como mulheres ou simplesmente se sentem mulheres. Serão essas pessoas mulheres apesar de terem órgãos do sexo oposto porque o sentido do termo mulher não pode mais ser limitado por critérios estritamente biológicos? Havendo um aumento no número de critérios a serem aplicados para definir o que é uma mulher será possível daqui por diante reconhecê-las na rua? Será possível ensinar às crianças o sgnificado de “woman”, “femme”, “mulher” ou “mujer” apenas com base no tradicional método indutivo?
Considerando as implicações da recusa da juíza em responder à pergunta, não admira que a senadora conservadora do Tennessee tenha usado tal resposta para criticar a educação progressista que, segundo ela, é oferecida às crianças americanas e tem como fundamento questionar as noções mais fundamentais. Se em 2022 a pessoa não consegue dar uma resposta direta a uma pergunta que até algumas décadas atrás teria como resposta o óbvio ululante, pois todos concordavam sobre o que era uma mulher e saberiam apontar uma mulher na rua, isso significa que há discordâncias profundas sobre os pressupostos da linguagem.
De fato, aquilo que era substância imutável tornou-se fluido, sujeito a disputas ideológicas: quem acredita que a biologia é o único critério para definir o que é um indivíduo do sexo feminino continuará reconhecendo mulheres na rua com base em suas características físicas; quem acredita que a biologia é um critério limitado e utilizado propositalmente para oprimir minorias atribuirá um significado mais amplo ao substantivo mulher, de forma que ele deixará de ter uma definição meramente ostensiva: será preciso usar outras palavras para descrever o que é uma mulher, palavras que, ao descreveram o estado psicológico da pessoa digam respeito à percepção que ela pessoa tem de si.
Aonde vamos parar se passarmos a nos desentender dessa maneira tão fundamental? Será que o caminho proposto por Pinker na abertura deste artigo para chegar à verdade ficará inviabilizado? De um lado há pessoas que consideram ridícula uma juíza que não consegue responder a uma pergunta óbvia sobre o que é uma mulher e de outro lado há pessoas que entendem perfeitamente a dificuldade de definir o que é uma mulher. Nesse contexto de polarização, como fazer para que os partidários da biologia e os partidários das minorias troquem ideias e pratiquem a racionalidade de Pinker, que nada mais é do que um humilde processo de busca da melhor aproximação possível da verdade, sem nenhuma pretensão de chegar finalmente a ela? Será possível discutir, isto é, dialogar sem insultar, quando não concordamos sobre o significado das palavras mais comezinhas da língua?
Prezados leitores, o óbvio ululante de outrora abriu-se ao meio e criou um abismo entre pessoas de diferentes espectros ideológicos. O desafio será evitar que a fissura se alargue tanto que a margem esquerda do rio perca de vista a margem direita. Não deixemos de ter esperança: talvez um dia voltemos ao mundo das obviedades ostensivas em que todos éramos felizes como as crianças que aprendiam que mulher era uma mulher.