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Relatos Selvagens

Posted by on 08/03/2022

“A História”, ele dizia a eles, “nos ensina que aqueles que, sem dúvida imbuídos de motivos honestos, livraram-se dos gananciosos usando a força bruta contra eles, tornaram-se eles mesmos vítimas da doença dos conquistados … Meu interesse na liberdade da Índia cessará se ela adotar meios violentos. Porque o seu fruto não será a liberdade, mas a escravidão.”

Trecho retirado do livro “Our Oriental Heritage”, do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) sobre Mohandas Karamchand Gandhi (1869-1948), advogado e nacionalista indiano

Os métodos lentos da variação e da hereditariedade são suplantados pelos processos mais rápidos da aquisição e transmissão da experiência. E na medida que o mecanismo da evolução deixa de ser cego e automático e se torna consciente, a ética pode ser inserida no processo evolucionário. Antes do homem aquele processo era simplesmente amoral. Depois de sua emergência na vida, tornou-se possível introduzir a fé, a coragem, o amor pela verdade, o bem – em resumo, um propósito moral – na evolução. Tornou-se possível, mas a possibilidade tem sido e frequentemente negligenciada.

Trecho retirado das “Romane Lectures” publicadas em 1943 pelo biólogo, filósofo e educador britânico Julian Huxley (1887-1975)

    Prezados leitores, Relatos Selvagens é um filme de 2014 que reúne histórias de pessoas que, confrontadas com situações em que se sentem injustiçadas, magoadas, ou violentadas, perdem o controle e deixam aflorar seus instintos mais primários. Num caso, dois motoristas trocam insultos na estrada e acabam matando-se mutuamente; noutro caso um engenheiro que tem seu carro guinchado quatro vezes se depara com o sadismo de pequenos burocratas que exercem poder dizendo não às pessoas,  e para se vingar explode um carro de guincho e vai parar na prisão; na última história do filme, na festa do seu casamento a noiva descobre que seu esposo a trai com uma colega de trabalho que também é convidada da cerimônia e para se vingar joga a moça contra um espelho, deixando-a toda ensanguentada.

    Em todos os casos, as reações viscerais acabam prejudicando o indivíduo, mas ele não deixa de tomar a atitude de dar vazão à sua raiva porque não consegue controlar-se ou porque se não o fizer explode. Nesse sentido, o filme, retratando situações do cotidiano vividas por cidadãos do século XXI, mostra que ainda estamos longe do ideal preconizado por Julian Huxley no trecho que abre este artigo. Em 1943 Huxley aventava a possibilidade que a evolução física do homem tinha chegado ao fim, ou procederia de forma muito lenta como resultado das pressões da seleção natural. Por outro lado, o homem poderia evoluir do ponto de vista moral, aprendendo com a experiência, incorporando esses ensinamentos ao seu comportamento e construindo assim uma prática que o levasse a refletir sobre os erros e a permeá-la de valores éticos que norteassem tanto as correções de rota quanto os fins a serem alcançados.

    Huxley sabia que tal potencial moral do homem estava longe de se tornar uma realidade mas, como bom humanista, ele nunca deixou de propor esse novo método de evolução como um meio de tornar o homem o senhor do seu destino na Terra.  Se nem todos nós somos capazes de agirmos sempre com um senso de propósito, com autocrítica e com consistência, é inegável que um homem como Mahatma Gandhi chegou perto disso. Em sua luta para garantir o direito aos indianos de autogovernarem-se sem ser tutelados pelos ingleses, o advogado de Gujarat sempre propôs e foi fiel ao princípio da não-violência, pelas razões expostas no trecho que abre este artigo.

    Ao ser preso inúmeras vezes pelos ingleses por sua atuação política anticolonialista, ele nunca se rebelou contra as autoridades e sempre se submeteu às leis então vigentes, pois considerava que se os indianos conseguissem tomar o poder pela força, no longo prazo a violência voltar-se-ia contra eles e eles tornar-se-iam tão tirânicos quanto os ingleses eram em relação aos seus colonizados Gandhi manteve-se fiel a seus princípios até o fim de sua vida: ao ser alvejado por tiros disparados por Nathuram Godse em 30 de janeiro de 1948, logo depois da promulgação da Lei de Independência da Índia em 1947, pediu que seu assassino não fosse punido, para que não houvesse estímulo ainda maior às violências mútuas cometidas por hindus e muçulmanos.

    Prezados leitores, se a reação instintiva dos homens é vingar-se pelas injúrias sofridas e o comportamento do Mahatma é exceção, o que fazermos nesses tempos em que uma guerra se desenrola na Europa e nenhuma das partes em conflito parece disposta a ceder de verdade para chegarem a um compromisso? O que fazer se russos e ucranianos e seus respectivos aliados exigem a submissão total do outro? Será que entramos em um círculo vicioso de violência e retaliações em que o único desfecho é a selvageria autodestrutiva? Ou será que aparecerá um outro espírito desinteressado, gentil, simples e compreensivo com seus inimigos como o de Gandhi que conseguiu atingir fins políticos sem jamais ter manchado suas mãos de sangue? Aguardemos e quem sabe a evolução moral preconizada por Huxley e praticada por Mohandas se desenrole ante nossos olhos.

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