Assim, por meio dos sentidos, nunca conseguimos realmente conhecer o “real”; podemos conhecê-lo somente sob a roupagem do espaço, do tempo e da causa que podem ser uma rede criada pelos nosso órgãos do sentido e do entendimento, desenhada ou aperfeiçoada para pegar e manter aquela realidade fluente e esquiva cuja existência podemos supor, mas cujo caráter jamais podemos descrever; nossa maneira de perceber estará sempre inextricavelmente mesclada à coisa percebida.
Trecho retirado do livro “Our Oriental Heritage”, do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) explicando as ideias de Shankara filósofo indiano (788-820)
O mundo é um palco; os homens e as mulheres, meros artistas, que entram nele e saem. Muitos papéis cada um tem no seu tempo: Sete atos, sete idades.
Trecho retirado da peça “As you like it”, do dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616), em que o mundo é comparado a um palco e a vida a uma peça
Em 4 de fevereiro, com o anúncio de um acordo de grande importância, o encontro entre Vladimir Putin e Xi Jinping marcou o início de uma nova ordem internacional. A divulgação da boa nova coube ao filósofo Alexander Dugin, que anunciou no dia seguinte: o colapso do “liberalismo global e da hegemonia ocidental”, derrotados pelo bloco emergente do “grande espaço chinês e do projeto euroasiático na atual “guerra das civilizações”
Trecho retirado do artigo “Dugin, o pensador que inspira Putin”, publicado no jornal O Globo em 13 de fevereiro
Prezados leitores, na semana passada eu tentei entender as diferentes e contraditórias visões sobre o líder russo Vladimir Putin, valendo-me das reflexões do filósofo Immanuel Kant sobre o arcabouço mental de que necessitamos para produzir conhecimento. O conhecimento não deriva naturalmente da experiência, mas requer que essa experiência seja vivenciada e interpretada pelo ser cognoscente. Daí que os fatos devem ser construídos em torno de um todo coerente a partir do nosso ponto de vista de seres racionais: essa interação entre a razão e a realidade por meio dos sentidos, que faz com que uma seja influenciada pela outra, é o único caminho para o conhecimento, embora ela implique uma limitação. Tal limitação foi explorada por um kantiano avant la lettre, Shankara, conforme explica Will Durant em sua descrição da filosofia hindu e que eu procurarei destrinchar nesta semana, a fim de lançar novas luzes sobre o personagem Putin.
Assim como Kant, em pleno Iluminismo europeu, colocou-se a questão sobre em que medida o conhecimento é possível, Shankara também se debruçou sobre ela e elaborou uma resposta que é muito parecida com a que o filósofo de Konigsberg deu, conforme mostra o trecho citado na abertura deste artigo. Adquirimos conhecimento do mundo por meio da nossa mente e dos nossos sentidos. Nossa mente cria um arcabouço em que nossas experiências são situadas em um determinado lugar e tempo e são consideradas como sendo causadas por um evento anterior. De posse desse arcabouço, experimentamos a realidade por meio dos nossos cinco sentidos, catalogando, lembrando e interpretando a realidade usando essa rede epistemológica que tenta flagrar um instante de um fluxo constante e sempre em mutação, armazenando-o em nossa memória, rotulando-o por meio da linguagem e assim eternizando algo que é fugidio e contingente.
Daí que Shankara vê um fosso entre a realidade subjacente e a nossa percepção dela: criamos um mundo mental formado de entes percebidos a que atribuímos certas propriedades e estabelecemos que tais entes mantém certas relações de contiguidade espacial e temporal e de causa e efeito. Mas para o filósofo indiano, a realidade subjacente não é aquela gravada e processada pelos nossos sentidos, aquela formada de indivíduos separados entre si, que têm crenças sobre o bem e o mal e acreditam em um Deus criador. Shankara considera que a realidade é indivisível, imutável, eterna. Os valores morais que embasam o comportamento social são categorias necessárias ao homem como as noções de tempo, espaço e causa são necessárias para sua vida intelectual. Nesse sentido, praticar o bem, seguir os rituais religiosos não é virtuoso, porque nos prende ao mundo ilusório das percepções mediadas pelo intelecto: a única virtude é simplesmente reconhecer que cada indivíduo é absolutamente idêntico a todos os outros indivíduos na onipotência e realidade universal do brâman, o Ser verdadeiro.
Sob um certo aspecto, o precursor de Kant na delimitação da possibilidade do conhecimento ao espaço confinado pelas nossas categorias mentais e nossos sentidos, não estabeleceu as bases do método científico possível como fez o filósofo iluminista. Ao contrário, ele apenas estabeleceu as bases do fatalismo e da resignação que caracterizam a história da Índia, ao longo de séculos de invasões que culminaram com a colonização europeia, a partir do século XV, com a chegada dos portugueses. Se o sofrimento e os prazeres, se o certo e o errado, se o bem e o mal são ilusões do indivíduo preso à sua especificidade, a saída é desapegar-se do mundo sensorial e chegar ao nível de sabedoria em que o indivíduo reconhece estar mergulhado no todo indistinto.
Independentemente de adotarmos ou não uma atitude passiva em relação à vida a partir da filosofia de Shankara, há uma certa vantagem em olhar o mundo como um palco onde se desenrola uma peça encenada por homens que irão nascer, crescer e envelhecer, conforme Shakespeare define no monólogo da comédia “As you like it”, citado acima. As diferentes versões dos fatos, as polêmicas sobre as qualidades morais de personagens, os choques de valores entre diferentes civilizações, são colocados em sua devida perspectiva: por um lado são inevitáveis porque o homem é incapaz de conceber sistemas cuja validade seja absoluta ou de chegar à verdade objetiva, preso que está ao seu intelecto e aos seus sentidos subjetivos; por outro lado, dão-nos uma lição de humildade no sentido de que se o mundo é um palco, nele podem desfilar toda sorte de personagens, com seus próprios códigos morais, valores e ideias.
Assim, para retomar o tema do artigo anterior: se de acordo com os valores prevalentes no Ocidente Vladimir Putin é um personagem detestável entre outras razões por seu viés autocrata e por não considerar o direito à opção sexual como um direito humano, de acordo com os valores prevalentes em uma determinada parte do Oriente Putin encarna o líder que enfrenta a hegemonia ocidental, conforme explica o artigo sobre Alexander Dugin citado na abertura deste artigo. Ele representa a nova ordem mundial formada pela parceria geopolítica da China com a Rússia, países em que não há eleições de representantes políticos e em que a concepção de direitos humanos é mais estreita que a Ocidental. Tal ordem contrapõe-se à ordem determinada pelos Estados Unidos ao longo do século XX. Diferentes personagens, diferentes histórias vividas por eles e diferentes narrativas delas: o mundo é o palco das ilusões para Shankara, o palco do choque de civilizações para Dugin e o palco dos atores de Shakespeare. Qual será o final: o final catártico das tragédias ou o final feliz das comédias? Ninguém sabe, nem Shankara, nem Dugin e nem Kant, nem Shakespeare.