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Aprendendo a jogar

Posted by on 01/02/2022

[…] Wittgenstein mostrou como todo o mundo do homem é constituído por sua experiência linguística e sugeriu que “toda a filosofia é uma crítica da linguagem”. Wittgenstein pensava que perguntar “Por que usamos esta determinada palavra ou expressão?” era a pergunta filosófica crucial, já que o foco da filosofia não no mundo, mas nos mecanismos de uso linguístico, resolveria a maior parte das perplexidades que constitu o flagelo da filosofia.

Trecho retirado do verbete “História da Filosofia Ocidental” na edição de 1974 da Enciclopédia Britânica sobre o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951)

A filosofia, [o empiricismo lógico] alegava, precisava então ser científica. Ela deveria procurar menos um conteúdo do que uma função: ela deveria produzir não retratos complicados do mundo, mas um pensamento claro

Trecho retirado do verbete “História da Filosofia Ocidental” na edição de 1974 da Enciclopédia Britânica

 

– Cidade maravilhosa fiquei na paz curtindo a beleza da vegetação, dos parques, da limpeza das ruas

– Legal – tudo tem um lado positivo. A impressão que tenho, posso estar totalmente enganada, é que é cheia de bolsonaristas… Para isso não tem limpeza…

Troca de mensagens no WhatsApp entre mim e uma amiga sobre Curitiba, onde passei alguns dias

 

    Prezados leitores, passei 15 dias em Curitiba como nômade digital, trabalhando durante o horário comercial e passeando pela cidade. Conforme mostra a mensagem que enviei para uma amiga e que reproduzi acima, tive uma impressão muito boa da cidade, na qual tive paz de espírito. Tal estado mental surgiu do fato de eu ter visto algo que me é estranho em São Paulo: o espaço público sendo usufruído por jovens, crianças, idosos, homens, mulheres, cachorros: vi curitibanos curtindo o sol no gramado que rodeia o Museu Oscar Niemeyer, quer deitados na relva verde e bem aparada ou em cima de alguma toalha, bebendo cerveja, água ou comendo, vi outros sentados em cadeiras de pano conversando e contemplando o pôr-do-sol em meio aos pinheiros-do-paraná. Aquilo passou para mim a impressão de ser uma cidade democrática, em que não é preciso dinheiro para divertir-se, para relaxar a mente: basta pegar uma bicicleta e serpentear pelas ciclovias que muitas vezes margeiam córregos, ou então andar pelos parques e apreciar a vegetação exuberante.

    E, no entanto, minha amiga vê algo diferente em Curitiba: uma cidade infestada de bolsonaristas e portanto tudo o que vi de bonito, limpo e ordeiro aos olhos dela toma a forma de exclusão, fascismo, privilégio, racismo estrutural. De fato, nas eleições de 2018, Jair Bolsonaro teve 76,5% dos votos válidos no segundo turno, enquanto Fernando Haddad teve 23,5%. Então, ao menos em 2018 a cidade era bolsonarista. Sob esse ponto de vista, minha impressão de que seja democrática porque as pessoas têm acesso a lazer de graça, sem que precisem frequentar um shopping center, pagar pelo estacionamento e pela comida na praça de alimentação, como ocorre na minha cidade natal, é equivocada: afinal se considerarmos que quem vota em Bolsonaro não tem apreço pela democracia e tem nostalgia pela ditadura militar, então Curitiba não é democrática, porque habitada por pessoas que não cultuam a democracia. Como resolver esse dilema? Será que é possível estabelecer com certeza a natureza da capital do Paraná?

    Recorro a Wittgenstein para tentar elucidar a questão ou ao menos estabelecer os termos do problema. Para o filósofo austríaco, era preciso formular as perguntas certas para que tenhamos respostas claras e precisas. O conteúdo da filosofia tinha sido poluído, ao longo dos séculos, pela utilização inadequada e desleixada da linguagem. Era tarefa do filósofo mostrar que muitas perguntas filosóficas para as quais não havia resposta eram simplesmente desprovidas de sentido e se dissolviam no ar à luz da análise dos termos linguísticos em que eram postas. Vou dar-lhes um exemplo para esclarecer esse método de análise.

    Uma velha questão é sobre a origem do mundo. O que deu início ao mundo que experimentamos? De qual início o mundo começou sua jornada? Ao invés de tentarmos inutilmente procurar uma resposta recorrendo a um ou outro filósofo grego, medieval, renascentista, iluminista ou moderno, devemos analisar a palavra central da pergunta, qual seja, “início”. Qual o sentido usual da palavra início na língua? Início é um momento determinado que marca uma fase de algo que ocorre no tempo e implica a noção de que algo veio antes e virá depois desse marco inicial. Por outro lado, o sentido de início dado pela pergunta filosófica sobre o princípio do mundo não tem a intenção de realizar questionamentos sobre o que veio antes de tudo, afinal pretende justamente estabelecer um marco zero a partir do qual tudo é explicado. Mas ao estabelecer um marco zero, o filósofo questionador deturpa o sentido usual de início pois falar de princípio sem nada que o preceda subverte o processo no tempo do qual o início é apenas um dos limites. Portanto, o melhor a fazer é descartar especulações sobre a origem do mundo porque tais perguntas não fazem sentido.

    O objetivo de Wittgenstein no início de sua carreira era depurar a linguagem de tal forma a chegar a uma linguagem perfeita, livre das teias de conceitos metafísicos há muito estabelecidos e utilizados a torto e a direito sem que os usuários da língua se deem conta. A linguagem perfeita de Wittgenstein, mediante a análise do discurso, seria reduzida aos seus elementos constituintes mais básicos e finais. Mais tarde, ele calibrou intelectualmente essa esperança de que a confusão pudesse ser eliminada de maneira completa e passou a ver o uso da língua como um jogo, sobre o qual os falantes precisam saber as regras para aprender a jogar. Uma vez tais regras sendo introjetadas, os problemas metafísicos, como aquele explicado no parágrafo anterior, seriam eliminados porque tais perguntas sem sentido não mais seriam feitas. A terapia linguística curaria a angústia metafísica.

    Será que posso aplicar tal terapia para estabelecer os atributos de Curitiba? Assim como a palavra início pode ter um sentido metafísico e um sentido de marco no tempo, democracia também pode ter uma dupla significação. De um lado, uma zeladoria eficaz de uma cidade, tornando-a segura, limpa e aprazível pode estimular seus habitantes a frequentar os espaços públicos por não se sentirem ameaçados por ladrões, assaltantes e moradores de rua. A ocupação da paisagem urbana por pessoas de classe média, que têm tempo disponível de lazer para passear, passa a impressão de que a cidade é democrática porque as praças, os parques, as ruas, os jardins não ficam vazios ou ocupados por aqueles que não têm onde morar e que usam os locais públicos como dormitórios. Mas, por outro lado, como as autoridades municipais conseguem manter os espaços públicos em ordem? Vigiando constantemente para que pobres e sem-teto lá não se instalem? E onde eles são colocados? São varridos para debaixo do tapete?

    Democracia assim pode ser definida como algo a ser usufruído por uma parte da população que tem acesso aos bens públicos porque se encaixa nos critérios de ordem, limpeza e beleza. Quem tem o potencial de poluir a paisagem idílica por seus andrajos ou por sua compleição física tem acesso negado a esses espaços urbanos. É uma democracia para os que já têm algo, inacessível para quem não têm emprego, não tem moradia e portanto não têm tempo de lazer que possa ser despendido nos cartões postais da cidade. Seria uma democracia censitária que não tem vergonha de assumir-se excludente? Ou será que a democracia excludente é a única forma possível de haver ordem, limpeza e beleza que torne os espaços urbanos do público?

    Prezados leitores, temo que a lição de Wittgenstein sobre garantir a limpidez da linguagem para que o pensamento seja claro não deu certo neste caso. Esclarecer o termo democracia a partir de um exemplo concreto implica sempre um julgamento moral que, de acordo com o positivismo lógico, corrente da qual Wittgenstein fez parte por algum tempo, é inverificável na prática e, portanto, é inútil tentar estabelecer um sentido unívoco. Para minha amiga os atributos positivos da cidade significam simplesmente que ela exclui aquelas pessoas que não se enquadram no perfil étnico e social preferido daqueles que votam em Bolsonaro, e portanto Curitiba não tem nada de belo e limpo. Para mim, bastou que eu pudesse passear tranquilamente pela cidade sem me sentir amedrontada ou assediada pela pobreza e pela sujeira tão onipresente em São Paulo que eu considerei que aqueles bens públicos estavam acessíveis a todos os habitantes da cidade.  E assim continuaremos eu e minha amiga, separadas pela linguagem, cada uma de nós jogando seu próprio jogo linguístico. Quem sabe um dia aprendamos a jogar usando as mesmas regras?

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