Ele é muito sensível ao sofrimento e à matança envolvidos no processo biológico para supor que tenham sido desejados de maneira consciente por uma divindade pessoal; esses erros cósmicos, em sua opinião, suplantam os indícios de algum desígnio. Nesse cenário de ordem e confusão, do bem e do mal, ele não encontra nenhum princípio de permanência, nenhum centro de uma realidade eterna, mas somente o torvelinho e o fluxo da vida obstinada, nos quais a entidade metafísica última é a mudança.
Trecho retirado do livro “Our Oriental Heritage”, do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) explicando as ideais de Sidarta Gautama, conhecido como Buda (563 a.C.-483 a.C.)
Foi uma história desanimadora, pois sua moral evidente é que a civilização é algo precário, cujo complexo delicado de ordem e liberdade, cultura e paz pode a qualquer momento ser destruído pelos bárbaros invadindo de fora ou multiplicando-se internamente. Os hindus haviam permitido que sua força fosse desperdiçada em divisões internas e guerras; eles haviam adotado religiões como o budismo e o jainismo, que os desestabilizou e impediu que realizassem as tarefas da vida; eles haviam falhado na organização das suas forças para a proteção das fronteiras e das capitais, da sua riqueza e da sua liberdade, contra as hordas de citas, hunos, afegãos e turcos que pairavam nas fronteiras da Índia e que esperavam a fraqueza da nação que os deixaria entrar. Por 400 anos (600 d.C.-1000 d.C.), a Índia pediu para ser conquistada; e ao final isso ocorreu.
Trecho retirado do livro “Our Oriental Heritage”, do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) sobre a conquista muçulmana da Índia, iniciada em (664 d.C.) no Punjab
Prezados leitores, na semana passada tratei do zoroastrismo e tentei explicar sua visão maniqueísta da luta do bem contra o mal. Nesta semana, terei como foco outra religião criada no Oriente, o budismo, tal como explicada por Will Durant e humildemente tentarei enxergar alguns reflexos das concepções budistas em nosso mundo ocidental pós-cristão, no qual muitos dos seus membros veem os ensinamentos de Sidarta Gautama como superiores ao cristianismo.
Durant nos conta a história da vida de Sidarta Gautama, ou ao menos a lenda que se consolidou como a história da vida do fundador do Budismo. Sidarta era filho de Shuddohodhana, rei de Kapilavastu, aos pés do Himalaia, e pertencia à casta dos xátrias, dos guerreiros. Já casado e com um filho, Rahula, Sidarta abandona a família e o seu país natal em busca de resposta à seguinte pergunta existencial: por que há tanto sofrimento no mundo? Sem entrar nos detalhes das peripécias de Sidarta ao longo de seus 80 anos de vida, a conclusão a que ele chega é que o sofrimento deriva do nascimento: viver é sofrer por que ao longo de nossa existência experimentamos muito mais a dor, o desespero, a solidão do que a felicidade.
Conforme o trecho que abre este artigo, se o saldo negativo da vida é a única certeza, o melhor a fazer é não nascer, e para os que já nasceram o ideal é suprimir o desejo: o desejo é a fonte da dor, já que inicia o ciclo de busca da satisfação e da frustração que é a essência da vida: praticar o auto-controle, manter-se calmo e alegre, ser generoso e não infligir mal a ninguém são o caminho para o homem livrar-se da intensidade das paixões mórbidas. Considerando que nenhuma divindade digna do nome teria por objetivo criar uma vida cheia de mal e miséria, Buda não acredita que haja um Deus e considera qualquer especulação metafísica uma perda de tempo: inquirir sobre se o mundo sempre existiu ou se teve um criador, se há uma alma eterna, se há um logos universal que dá sentido a tudo, é um exercício fútil, pois o homem é apenas uma sucessão de estados físicos e mentais, ditada pela hereditariedade, pelo meio ambiente e pelas circunstâncias, um fluxo eterno de mudanças em que cada momento ele tem determinadas percepções e sensações, as quais não podem ser reunidas em um todo coerente. Nesse sentido, não havendo uma razão transcendente que coloque ordem no fluxo caótico e chegue à verdade, o estado de beatitude do Nirvana só pode ser atingido durante a vida quando o homem se livra de todos os sentimentos, desejos, pensamentos, interrompendo a sucessão de mudanças, ao menos internamente.
Buda pregou então uma ética de como viver, sem rituais, sem metafísica, sem teologia, sem veneração a algum Deus. É verdade que seus discípulos acabaram desvirtuando muitos dos seus ensinamentos e foram criados monastérios habitados por monges que cultuam Buda na prática como uma divindade. Mas comparativamente às religiões monoteístas como o judaísmo, o islamismo e o cristianismo, o budismo não exige muitas obrigações dos seus fiéis e, negando a existência de Deus, acaba retirando o caráter punitivo que aquelas outras religiões infligem aos pecadores que não seguem os preceitos sobre como bem agir ditados pela suprema divindade. Daí a atratividade do budismo aos que, no mundo pós-cristão, estão à procura de uma espiritualidade que não faz grandes exigências morais, além de não matar, buscar a convivência pacífica e não se deixar dominar pela ânsia de ter e de saber.
Apesar de o budismo parecer benéfico à primeira vista, por não preconizar nenhuma verdade revelada por Deus, em detrimento de qualquer outra, como fazem as três religiões monoteístas, Durant via um lado negro no agnosticismo niilista criado por Sidarta Gautama. Conforme explica no trecho que abre este artigo, o historiador e filósofo americano considerava que o pacifismo engendrado pelo budismo tornou os hindus indefesos ante a militância monoteísta dos muçulmanos, cheios de ardor militar na luta contra os infiéis que não acreditavam no único Deus verdadeiro, Alá. E sob uma perspectiva histórica, a invasão muçulmana da Índia foi ruim para os hindus. Impôs uma religião exclusivista e causou a destruição material de sua civilização: um dos imperadores muçulmanos, Aurangzeb (1618-1707), um fanático religioso, proibiu qualquer culto público das religiões hindus nativas e em um único ano, entre 1679 e 1680, ordenou a destruição de 66 templos em Amber, 63 em Chitor, 123 em Uidapur, além de fazer construir uma mesquita onde antes havia um templo sagrado para os hindus em Benares. O que vemos hoje de arquitetura e arte da Índia é o que restou da destruição de 1000 anos de civilização que havia florescido antes da chegada dos muçulmanos, imbuídos de uma certeza moral que lhes dava a justificativa para a guerra santa de conquista da população nativa.
Prezados leitores, para Durant a lição que fica é que o preço da civilização é a eterna vigilância. Uma sociedade deve amar a guerra, mas manter a pólvora seca, pronta para ser usada para defender aquilo que construiu. A fascinação que o budismo exerce hoje no mundo ocidental talvez se deva ao seguinte: uma vez perdidos os ideais religiosos de disseminação da palavra de Cristo no mundo todo, e que deu origem ao colonialismo europeu nas Américas, na África e na Ásia, semelhantes aos ideais muçulmanos que foram disseminados na Europa, África, e Ásia a partir da expansão muçulmana que teve início em 622 a.C. e durou até a criação do Império Otomano, em 1299, a espiritualidade tornou-se um assunto individual, que se limita ao desejo de paz a qualquer custo, para evitar o sofrimento e a garantir um bem-estar moderado, sem qualquer ardor militante de propagar os verdadeiros valores à Humanidade, quaisquer que eles sejam. Será que o Ocidente pós-cristão cairá como a Índia caiu em face de fanáticos do outro lado do mundo? Os futuros historiadores se encarregarão da narrativa, como Will Durant encarregou-se de contar a trágica história do Hindustão.