Isaías e Amós iniciaram, em uma época militarista, a exaltação daquelas virtudes de simplicidade e gentileza, de cooperação e amizade, que Jesus tornaria um elemento crucial do seu credo. Foram eles que, quando a Bíblia foi impressa na Europa, incendiaram a mente dos alemães com um cristianismo rejuvenescido e iluminaram a tocha da Reforma Protestante; foram suas virtudes ferozes e intolerantes que formaram os puritanos. Sua filosofia moral foi baseada na teoria que requer melhor comprovação – a de que o homem justo irá prosperar, e o homem mal será destruído; mas mesmo que isso seja uma ilusão é a fraqueza de uma mente nobre.
Trecho retirado do livro “Nossa Herança Oriental”, do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981)
Mas não devemos sucumbir à fantasia protestante secular da grandeza de que controlamos o sistema terrestre através de processos físicos desencadeados por nós e que podemos ou devemos agora, generosamente, parar de fazê-lo. É normal que os seres vivos intervenham na natureza, mas é improvável que a própria natureza possa ser extinta. A própria natureza, a Mãe Terra, tão doce e tão-pseudo gentilmente invocada pelo movimento climático, cuidará de uma correção; nossa existência continuada como espécie animal está em suas mãos mais do que em nossas. Mas “culpa” e “apocalipse” não são categorias da história natural.
Trecho de artigo de Konstantin Sakkas, filósofo e historiador, intitulado Apocalipse Agora, publicado em 31 de dezembro de 2021
Prezados leitores, na semana passada eu chamei a atenção para a comparação que Will Durant faz entre o método assírio de escolher seus governantes, assassinando os antigos e os substituindo pelos seus carrascos, e o método americano de escolher os governantes, por meio de eleições em que o poder corruptor do dinheiro determina em grande parte quem será o escolhido. Cada um deles tem suas vantagens e desvantagens, mas o fato é que o conhecimento do percurso histórico das civilizações oferecido por um livro como o de Durant permite-nos perceber a real dimensão dos nossos valores relativizando-os, e ao mesmo tempo perceber como eles são universais, isto é, como as nossas opções sobre a organização da sociedade e suas leis já foram tentadas em outras épocas e em outros lugares em que se enfrentaram os mesmos dilemas que nós enfrentamos.
Pois se a violência política tem a vantagem de resolver de maneira rápida uma situação, permitindo que haja uma escolha clara por determinado caminho, os compromissos que a democracia representativa requer para que não haja violência e todos participarem do processo pode levar a um descrédito do processo pela corrupção que está geralmente associada às trocas de favores necessárias aos compromissos. Violência e eficácia, seguindo a prática dos assírios ou paz e tergiversação, seguindo a prática dos modernos ocidentais? Nesta semana, meu foco será nas comparações que Durant faz das práticas religiosas ao longo da história das civilizações e como isso pode lançar luz sobre nossas próprias escolhas no século XXI.
Como mostra o trecho que abre este artigo, Will Durant nos fornece um retrato da religião judaica descrevendo as ideias de dois dos maiores profetas do Antigo Testamento, Amós, que morreu em 745 a.C., no reino de Judá, e Isaías (de 765 a.C. a 681 a.C.). A Palestina era então dividida, depois do reinado do rei Salomão (que teria durado de 966 a.C. a 926 a.C.), em dois reinos, o reino do norte, Israel, cuja capital era Samaria, e o reino do sul, Judá, cuja capital era Jerusalém. As disputas entre as várias tribos levam ao enfraquecimento da Palestina, que tem que enfrentar vários inimigos sucessivamente, os babilônios, os assírios, os egípcios e os persas e é nesse clima de incertezas e debilidade que Amós e Isaías apresentam ideias religiosas radicais.
Para que o país pudesse ser unificado e pudesse fazer frente aos que tentavam destruí-lo, era preciso que a religião deixasse de ser uma prática ritualística de oferecimento de sacrifícios e de orações e se tornasse uma prática de virtudes, isto é, menos cobiça e avareza, menos crueldade com os fracos e menos opressão dos pobres com impostos, confiscos e trabalhos forçados. Só se os homens fossem justos em seus atos cotidianos é que Deus ficaria satisfeito, pois os rituais só serviam para enriquecer mercadores e sacerdotes. Se Deus ficasse feliz com o bom comportamento dos homens ELE os beneficiaria com paz e prosperidade. Se ele ficasse descontente com a insistência nos pecados, Deus castigaria os homens por não terem ouvido suas admoestações contra a soberba, a avareza, a inveja, a ira, a luxúria, a gula e a preguiça e lhes infligiria fome, escravidão, peste, exílio como justa paga das falhas morais.
Pecado, mudança de comportamento, castigo pela incapacidade de mudar. Durant descreve como essa mudança de ênfase da religião em prol do conceito abstrato de justiça representa um passo à frente para indivíduos que rezavam e faziam sacrifícios para seus deuses para conquistar o favor das divindades e assim conseguir derrotar seus inimigos. Esse fervor dos profetas pela prática virtuosa acima de tudo foi retomado pelo Cristianismo e depois de séculos de institucionalização da Igreja Católica, que acabara se transformando em uma instituição muito mais política do que religiosa, pelos Protestantes. Estes denunciaram a corrupção moral dos membros da Igreja, focados que estavam no poder em detrimento do amor, da fé, da caridade e da esperança pregados por Jesus Cristo e pregaram a primazia da consciência individua na relação direta com Deus independentemente de intermediários que cobravam um alto preço pelos serviços.
É neste ponto que extrapolo as comparações de Durant entre o fervor dos profetas do antigo Testamento e o fervor dos Protestantes e Puritanos para abordar o fervor dos arautos do apocalipse climático em pleno século XXI. O esquema de pensamento é o mesmo: o homem pecou ao explorar a Terra em demasia, ao submetê-la aos seus caprichos e as suas necessidades, em detrimento dos outros seres vivos. Se o homem continuar a pecar, o resultado será a mudança climática irreversível: o aquecimento da Terra e a inviabilização da vida como a conhecemos atualmente. A solução é o Homem emendar-se moralmente e agir de maneira ética para com a Natureza, restabelecendo o equilíbrio perdido.
Conforme mostra Konstantin Sakkas em seu artigo, cujo trecho é transcrito acima e em que ele faz um breve percurso sobre os eventos cataclísmicos que moldaram a história da Terra ao longo de milhões de anos, a atividade do homem sem dúvida tem influência sobre a vida das plantas e dos animais. No entanto, isso não é suficiente para que pretendamos ter uma importância fundamental na história da vida da Terra de forma que possamos escolher preservá-la ou destruí-la. Nosso sentimento de culpa ou falta dele é irrelevante em face dos bilhões de anos do planeta azul, dos vários períodos de glaciação e de aquecimento já ocorridos muito antes que o Homo Sapiens estivesse no planeta, do tempo ínfimo em que nós atuamos em face da imensidão da história natural e das extinções em massa de seres vivos causadas por essa alternância de períodos. Em suma, sobrestimamos tanto nossa capacidade de destruir a natureza quanto nossa capacidade de regenerá-la por uma escolha do que é certo, porque ela tem seus próprios ritmos e complexidades, ditados por bilhões de anos de transformações.
Em suma, esse fervor moralista de redenção dos pecados pela prática da virtude, que desde os grandes profetas do Antigo Testamento até a Reforma Protestante focava nas relações dos homens entre si, e de como elas poderiam ser melhoradas em prol da justiça, paz e harmonia, na era pós-cristã da civilização ocidental ficou como resquício da religião perdida transposto para as relações do Homem com a Natureza. O equilíbrio será restaurado quando os seres humanos passarem a ter um comportamento eticamente responsável com o meio ambiente e a Mãe Terra nos recompensará com bonança duradoura. No entanto, à luz da história da vida na Terra, será que Gaia se importa com nosso destino como o Deus da Bíblia se importa com o povo que o escolheu como a única divindade? Essa é a dúvida plantada pela descrição objetiva de Sakkas sobre a história do nosso planeta.
O sangue da violência ou dinheiro da corrupção no campo da política, o pecado ou a virtude no campo religioso: conforme ensina Durant em sua História das Civilizações, os dilemas enfrentados ao longo das épocas tendem a repetir-se adaptando-se às circunstâncias de lugar e de tempo, mas sempre nos obrigando, enquanto seres sociais, a fazermos nossa opção coletiva em prol de como queremos organizar nossas relações mútuas. Mas não envolvamos Gaia: ela não tem nada a ver com nossas escolhas morais.