A fraqueza das monarquias orientais estava relacionada ao seu vício na violência. Não somente as províncias assujeitadas revoltavam-se frequentemente, mas dentro do próprio palácio ou família real a violência vira e mexe tentava destruir o que a violência havia estabelecido e mantido. As nações do Oriente Próximo preferiam revoltas violentas a eleições corruptas, e sua forma de livrar-se de governantes indesejáveis era o assassinato.
Trecho retirado do livro “Nossa Herança Oriental”, do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981)
A mais medíocre democracia é preferível à mais perfeita ditadura, seja ela encabeçada por Pinochet ou Fidel Castro. Esta é minha bandeira e por isso defendo as imperfeitas democracias contra todas as ditaduras, sem exceção. […]Agora, o Chile acaba de celebrar eleições e, para mim, não há dúvida que, no momento presente, a maioria dos eleitores chilenos cometeu um grave equívoco.
Trecho retirado do artigo “Os ditadores e o erro do Chile”, do escritor peruano Mario Vargas Llosa
O Chile caiu e só resta o Brasil
Título da última live do ano de Rodrigo Constantino, economista e jornalista de direita brasileiro que mora nos Estados Unidos
Prezados leitores, em sua descrição das civilizações que floresceram nas regiões que são atualmente conhecidas como a Ásia Menor e o Oriente Médio, Will Durant chama a atenção para o fato de que na conquista de um reino por outro, a destruição das obras arquitetônicas e artísticas, a profanação dos templos religiosos, a escravização e o assassinato de populações inteiras eram a regra. Babilônios, assírios, hititas, armênios, frígios, lídios, árabes, fenícios, sírios e judeus, ameaçados em suas fronteiras por povos nômades, recorriam ao derramamento do sangue dos inimigos como forma de vingar-se de injúrias passadas e de garantir a sobrevivência das suas próprias sociedades. As páginas de “Nossa Herança Oriental” estão recheadas de descrições do que era feito quando a batalha era ganha: pessoas eram queimadas vivas, incluindo crianças, ou eram escalpeladas ou tinham os olhos arrancados.
Como é característico de um autor que, ao contar a história das diferentes civilizações, procura tirar lições sobre os pontos positivos e negativos de cada uma delas e fazer comparações com a própria civilização da qual ele fazia parte, o trecho que abre este humilde artigo contém uma nota irônica em relação ao modus operandi das monarquias orientais: eles preferiam a ruptura radical com o status quo, por meio do aniquilamento físico da sociedade anterior, incluindo seus recursos humanos, econômicos e artísticos, ao invés da escolha dos governantes por meio de eleições corruptas, influenciadas pelo dinheiro dos mais ricos, como era a praxe na democracia americana da década de 1930, época em que Durant lançou seu livro. A ironia contida na comparação entre o sangue derramado pelos déspotas orientais e o dinheiro distribuído pelos poderosos para eleger aqueles que serviriam seus interesses no regime democrático realça um problema enfrentado no Ocidente em pleno século XXI: a decepção dos eleitores com o sistema político e a rejeição à participação no processo, fenômeno exemplificado nas recentes eleições presidenciais no Chile, vencidas por Gabriel Boric contra José Antonio Kast. Em que pese o candidato da esquerda ter obtido no segundo turno 8,3 milhões de votos, um recorde no país, o fato é que no primeiro turno houve uma abstenção de 53%.
Tais resultados mostram que todos os eleitores estão descontentes: a maioria não teve interesse em votar num primeiro momento e só o fez no último round da disputa para livrar-se de um candidato que muitos chilenos consideravam seria um desastre, no caso o advogado de 55 anos que era contra a imigração, contra o aborto e contra o casamento gay. O voto de 55,9% dos eleitores que compareceram às urnas em Boric não foi porque acreditavam particularmente em um deputado de 35 anos que ganhou proeminência ao liderar os protestos de 2019 em prol de uma ampliação dos direitos sociais, particularmente da educação, da saúde e da previdência. Afinal, se assim fosse, eles já teriam comparecido já no primeiro turno.
Será que esse desinteresse se deve ao fato sugerido por Durant a respeito dos Estados Unidos de que o método de seleção por meio de eleições não escolhe os que representarão de fato os interesses do povo, mas os que recebem dinheiro para defender pautas particulares? Caso seja essa a percepção dos eleitores, qual será o efeito desse desencanto generalizado com a corrupção? Jogaremos a democracia pela janela e optaremos por soluções mais rápidas ou permaneceremos com ela a despeito dos seus defeitos, porque não há nada melhor?
Há diferentes perspectivas a esse respeito. Mário Vargas Llosa, como bom liberal que é, faz uma opção radical pela democracia. Em seu artigo, citado acima, ele declara considerar um erro os chilenos elegerem uma pessoa sem experiência que pode fazer desandar a receita de sucesso econômico do Chile. No entanto, o povo tem direito de errar e se Boric cometer erros o mesmo povo que o elegeu livrar-se-á dele nas próximas eleições, sem violência e sem traumas. Já expoentes da direita no Brasil, como Rodrigo Constantino, tem uma visão menos otimista do processo democrático na América Latina.
Na sua live natalina, o jornalista e economista radicado nos Estados Unidos desde a reeleição de Dilma Rousseff em 2014, manifesta a opinião de que a desigualdade social e as características culturais do povo fazem com que a democracia ofereça surpresas desagradáveis aqui em nossas terras, fazendo com que esquerdistas que têm como foco fazer justiça social transferindo renda dos que produzem para os que não produzem sejam eleitos, impedindo o desenvolvimento saudável do capitalismo. Ele é categórico em dizer que o Chile vai certamente piorar, em que pese vislumbrar a possibilidade de que não seja tão ruim quanto se pode supor pelo perfil esquerdista de Gustavo Boric. Tanto assim que Constantino recomenda aos chilenos de terem um plano B de emigrar se a vida sob Boric tornar-se insuportável pelo peso da sanha redistributiva.
Qual a saída para que a democracia permaneça como o regime vigente em países com grandes disparidades sociais e econômicas como ocorre na América Latina? Que os candidatos de esquerda ou direita esqueçam os ideais que inspiram seus eleitores a votar neles e quando se elejam governem de maneira a contemporizar com os diferentes interesses ou favorecer os interesses dos que têm influência econômica para manter o status quo? Ou as polarizações ideológicas serão cada vez mais intensas de modo que o homem da esquerda ou da direita eleito que trair sua base eleitoral será deposto violentamente como vingança tanto pelo grupo antagônico quanto pelo grupo de fiéis decepcionados com sua atuação?
Enfim, o dilema colocado por Durant na sua caracterização das engrenagens do poder na Ásia Menor e no Oriente Médio há três mil anos repete-se agora. A opção entre a ditadura e a democracia, entre o sangue da violência e as moedas que lubrificam o sistema de troca de favores que caracterizam sistemas políticos como a democracia, em que a contemporização faz parte do jogo, está sempre colocada, seja como ameaça, seja como esperança. Quem acredita em determinados princípios sobre a organização da sociedade o toma lá dá cá democrático é asqueroso. Quem acredita mais na caminhada do que no fim dela, a democracia é cheia de percalços e moedas, mas este é o preço a pagar para que seu caminho não tenha uma gota de sangue.