Não é só a pessoa de Emmanuel Macron que derrotaremos em 2022, melhor, sua ideologia, da qual ele é o estandarte, o porta-voz e o executor. A pessoa de Macron não nos interessa, porque ela é fundamentalmente desinteressante. Ache para mim um único francês no país que possa explicar o que pensa Emmanuel Macron, um único! Não há nenhuma pessoa. Nem mesmo ele. Ninguém sabe quem ele é, porque ele não é ninguém. Atrás da máscara da inteligência perfeitamente tecnocrática, atrás da montanha de ideias superficiais, atrás dos slogans contraditórios, atrás do “ao mesmo tempo”, sinônimo de desordem, e “qualquer que seja o custo”, sinônimo de ruína, não há ninguém, não há nada. Macron esvaziou nossa economia, nossa identidade, nossa cultura, nossa liberdade, nossa energia, nossas esperanças, nossa existência, ele esvaziou tudo, porque ele em si mesmo é o grande vazio, o abismo. Em 2017, a França elegeu o nada, e ela caiu lá dentro. Meus amigos, é hora de tirar nosso país e nosso povo desse poço sem fundo. Deixaremos na vitrine, esse manequim de plástico, esse autômato […] essa máscara sem face que desfigura a nossa face. Nós deixaremos esse adolescente buscar-se eternamente.
Trecho do discurso de Éric Zemmour, ensaísta francês de origem judia e argelina, no primeiro evento realizado em 5 de dezembro em Villepinte, após lançar sua candidatura à presidência da França
A sociedade, afirma De Maistre, […] não é uma associação artificial construída de forma elaborada e baseada no cálculo do interesse e da felicidade individuais, mas algo que se baseia também no anseio humano incriado, original e irresistível de se sacrificar, no impulso de se imolar sobre um altar sagrado sem esperança de volta. Os exércitos obedecem ordens e caminham para a morte; seria grotesco supor que são animados por pensamentos de vantagem pessoal.
Trecho retirado do ensaio “Joseph de Maistre e as origens do fascismo”, incluído na coletânea “Limites da utopia” do ensaísta britânico Isaiah Berlin (1909-1997)
Prezados leitores, na semana passada eu citei um trecho da conversa entre três especialistas em psicologia, Steven Pinker, Jonathan Haidt e Jordan Peterson em que eles falavam sobre a influência deletéria do tipo de comunicação estimulado pelo Twitter sobre a possibilidade de argumentação, da busca de verdades comuns e do próprio exercício da democracia. Entre os muitos insights que os três acadêmicos compartilharam foi a respeito da natureza tribal do homem, fruto da nossa evolução nas savanas africanas. Precisávamos reunirmo-nos em grupos para juntos derrotar um inimigo, seja um predador ou outro grupo, em busca de recursos finitos, que se tornavam ainda mais raros considerando a pouca tecnologia disponível nos primórdios da humanidade que viabilizasse a exploração eficiente daquilo que tínhamos.
Essa característica tribalista ficou introjetada no nosso cérebro e ela aflora seja na internet, por meio da troca de desaforos nas mídias sociais, seja na política. Meu objetivo nesta semana é explorar essa face politica do tribalismo por meio de um acontecimento político que não recebeu muita atenção no Brasil, o primeiro comício de Éric Zemmour como candidato à presidência da França. Nascido em 1958, ele é filho de judeus do norte da África que depois da Guerra da Argélia resolveram ir para a França para reconstruir a vida na metrópole, depois que a colônia havia sido perdida. Já escreveu vários livros de ensaios e seu grande tema em todos eles é o declínio da França.
Para Zemmour a França está decadente porque, dentre outras razões, deixou-se invadir por imigrantes muçulmanos que não conseguem se adaptar à República laica criada pela Revolução Francesa de 1789, que separou a Igreja do Estado, e não fazem a mínima questão de assimilar-se, mesmo porque, sucessivos governos, de esquerda e direita, em nome da diversidade e da inclusão, permitiram que eles entrassem no país e que continuassem seguindo suas práticas sociais e religiosas sem nenhuma limitação. O resultado é que se a imigração continuar sem controle e considerando a baixa taxa de natalidade dos franceses tradicionais, o país, tal como ele é há mil anos, deixará de existir, por causa da substituição de uma população por outra e a cultura e a civilização francesas serão destruídas.
No último dia 5 de dezembro, depois de pintar esse quadro negro das perspectivas da nação francesa, Zemmour propôs sua receita de salvação: acabar totalmente com a imigração, expulsar cidadãos com dupla nacionalidade que tenham cometido crimes, coibir ao máximo o direito de asilo e o direito de estrangeiros de gozarem do Estado do bem-estar social francês, reduzir drasticamente a concessão de cidadania a membros da família de cidadãos que conseguiram a cidadania francesa. No plano da educação, Zemmour quer acabar com a escrita inclusiva, pela qual pronomes que denotam gênero são eliminados para acabar com a escolha binária entre masculino e feminino, e no geral acabar com as políticas de inclusão e diversidade para focar no mérito, tal como segundo ele, fazem os asiáticos, que copiaram a educação tradicional que era dada aos franceses até 40 anos atrás.
Ouvindo esse ensaísta tornado político falar ficamos com a impressão de que a França está num estado lamentável de podridão e decadência, só solucionável pela tomada de medidas enérgicas. Como ilustrado pelo trecho do seu discurso citado na abertura deste artigo, Zemmour utiliza palavras fortes como a França lançada no abismo pela eleição de um fantasma como Macron, a França desprovida dos seus elementos mais fundamentais, a França no caminho da autoimolação. No entanto, olhando os dados do CIA World Factbook, vemos que esse catastrofismo está longe dos fatos gerais: a França é um país em que 100% da população rural e urbana tem acesso à água potável e ao saneamento básico, em que não há crianças com menos de cinco anos desnutridas, em que a expectativa de vida das mulheres é de 85 anos e a de homens é de 82 anos, que tem a nona maior economia do mundo, cujo PIB per capita é de 42.000 dólares.
Nesse sentido, ele não segue a receita iluminista de Steven Pinker, para quem devemos enfatizar mudanças graduais e seguras que levem a prosperidade, a felicidade e a liberdade para um número cada vez maior de pessoas por uma análise racional do custo-benefício das políticas públicas. Falar que a França está perdendo sua identidade e que o atual presidente da República Emmanuel Macron é desprovido de alma remete ao pensamento reacionário de Joseph-Marie de Maistre (1753-1821), tal como descrito no ensaio de Isaiah Berlin, citado acima. De Maistre não acreditava que o Iluminismo enquanto sistema de ideias servisse para organizar a sociedade, porque para ele, a natureza humana não tinha como ponto forte esse componente racional tão enfatizado pelos filósofos das Luzes que lhes justificava o otimismo com relação ao futuro da humanidade, no qual os seres humanos resolveriam suas diferenças em bases contratuais, isto é, de mútuo consentimento, por meio da troca de concessões e vantagens. Para De Maistre, a natureza humana era tal que o indivíduo está disposto a se sacrificar por uma fé cega em algo que está além dele e que o motiva a lutar, seja a religião, o grupo, a nação, a ideologia. Esse é o fundamento do poder e quem quer que ache que há outro fundamento, mais racional e menos misterioso, só causa violência e caos quando quer criar a sociedade perfeita sem levar em conta o que o homem realmente é.
Prezados leitores, Éric Zemmour reuniu quase 15.000 pessoas em Villepinte, entusiasmadas com seu discurso catastrofista e exclusivista, cheio de expressões poéticas, como vencer a desesperança com o destino do país mediante um esforço heróico de superação. Ao apelar à emoção dos franceses, receptivos à ideia de defesa da civilização, da cultura e da identidade do país, o ensaísta e jornalista aspirante a político não segue os ensinamentos de De Maistre a respeito da natureza profunda dos homens, tribalista e irracional? Será que eleger Macron como bode expiatório dos males da nação, personificando-os em um ser destituído de humanidade, como Zemmour descreve o atual presidente francês, permitirá tornar esse judeu de origem argelina popular o suficiente para fazê-lo derrotar o tecnocrata que não tem resposta definitiva para nenhum problema porque seu foco é buscar consensos e não incentivar o conflito? E se eleito, Zemmour realmente cumprirá suas promessas de campanha, ou vai contemporizar e trair seu eleitorado? Será ele um novo Trump, cheio de retórica bombástica na campanha, mas que em quatro anos de governo fez muito pouco para atender às reivindicações daqueles que o elegeram?
Aguardemos os próximos capítulos. Uma coisa é certa: o sucesso da retórica inflamada de Zemmour num país de Primeiro Mundo mostra que nem só de pão vive o homem.