O corpo de leão transforma-se na cabeça de um ser humano com queixo prógnato e olhos cruéis; a civilização que a construiu (cerca de 2990 a.C.) ainda não havia esquecido seus modos bárbaros. As areias costumavam cobri-la e Heródoto, que viu muita coisa que atualmente não está mais ali, não fala absolutamente nada sobre ela. […] À beira do Nilo, ao longo de 20 quilômetros em ambos os lados, corre uma faixa de solo fértil; do Mediterrâneo a Núbia há somente essa tira resgatada do deserto. Esse é o fio no qual se pendurava a vida no Egito.
Trecho retirado do livro “Our Oriental Heritage” de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano
A Vila Itororó é um espaço público e cultural da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo que contempla um conjunto remanescente de edificações construídas nos anos 1920 e que está em fase de restauro. A Vila Itororó sempre teve como uso principal a moradia, mas foi tornada patrimônio histórico e desapropriada para fins culturais a partir de 2013.
Trecho retirado do site vilaitororo.prefeitura.sp.giv.br sobre o conjunto de casas situado na Bela Vista, mandado construir pelo filho de portugueses nascido em Guaratinguetá Francisco de Castro
O desemprego, superior a 13% da força de trabalho no trimestre móvel encerrado em agosto, é mais que o dobro da média dos 38 países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). […] Segundo economistas da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a desocupação no Brasil poderá continuar elevada até 2026.
Trecho retirado do artigo “O desmonte” do jornalista Rolf Kuntz, publicado no Estadão em 14 de novembro
Prezados leitores, em sua descrição da civilização egípcia, que se desenvolveu graças ao rio Nilo, Will Durant adota como ponto de vista as impressões que ele tem em sua própria viagem pelo rio ao longo da qual ele vai parando nos locais históricos. Nesse sentido, ele imita o pai da História, Heródoto (484 a.C.-430 ou 420 a.C.), que esteve no Egito em algum momento depois de 460 a.C. e começando no delta do rio chegou até a primeira catarata, tenho parado em Mênfis, em Tebas e em Gizé, local das Grandes Pirâmides.
Heródoto descreveu o Egito como uma dádiva do Nilo e não sem exagero, pois conforme explica Durant em seu livro, as cheias sazonais do Nilo permitiram a agricultura irrigada em uma estreita faixa de 20 km às margens. Fora dessa faixa não havia nada mais do que a areia do deserto. O avanço inexorável do Saara é tanto que há uma informação curiosa, incluída no trecho que abre este humilde artigo: Heródoto não conheceu a Grande Esfinge, a estátua do faraó Quéfren, quarto rei da quarta dinastia do Antigo Egito, localizada em Gizé, e que na época dele já tinha 2.000 anos, pois ela já estava coberta pela areia e só depois foi redescoberta.
Entre o que as areias do Saara engoliram ao longo dos séculos e o que foi recuperado do patrimônio material deixado pelos antigos habitantes das margens do Nilo em termos de arquitetura, escultura e pintura, o fato é que o Egito atual, produto da conquista árabe no século X d.C., e que por isso hoje é um país muçulmano, tem no turismo uma fonte indispensável de receitas. Em 2010, antes da Primavera Árabe em 2011, ele empregava 12% da força de trabalho, gerava 12,5 bilhões de dólares e contribuía com 11% do PIB. Daí que o governo continua a investir no setor, a despeito dos distúrbios sociais e políticos ocorridos no país desde então. Prevê-se para novembro de 2022, a um custo de quase 800 milhões de dólares, a inauguração do Grande Museu Egípcio, próximo às Pirâmides em Gizé, e que exibirá toda a coleção existente do rei Tutancâmon, ao redor de 5000 peças, e outros 13.000 artefatos, muitos deles jamais exibidos antes, por falta de espaço adequado. É de se esperar que quando este museu comece a funcionar ele atraia um número suficiente de turistas que faça com que o país gere empregos para os 105 milhões de egípcios, cuja idade média é de 24 anos de idade.
Aqui em nossas terras tropicais, a situação social e ambiental não é tão dramática como no norte da África acossado pelo deserto e pela alta densidade populacional, mas o rastro de destruição deixado pela pandemia de covid é nítido em uma cidade como São Paulo para quem como eu a percorre semanalmente a bordo da minha bicicleta. Vou rodando a esmo, atrás das ciclovias que frequentemente começam e terminam abruptamente. É difícil haver circuitos completos que possam ser percorridos do começo ao fim que nos levem de um a outro ponto conhecido da cidade, mas hoje eu encontrei uma rota que passa pela rua 13 de maio e percorrendo a Bela Vista chega no Terminal Bandeira, passando pela Câmara Municipal. À parte as barracas e os fogareiros dos sem teto que estão por toda a parte, à parte as pichações de prédios que recentemente foram restaurados e pintados como a sede dos Correios no vale do Anhangabaú, é possível encontrar boas surpresas em termos de patrimônio resgatado das areias do tempo. A de hoje foi a Vila Itororó, na rua Martiniano de Carvalho.
Eu lembrava deste local na década de 90, porque trabalhava a dois quarteirões de lá e tinha que passar em frente para voltar para casa. Era um cortiço onde várias famílias se alojavam. Atualmente é um centro cultural e, conforme o trecho mencionado na abertura deste artigo, está em restauração. Como vocês poderão ver abaixo, nas duas humildes fotos que eu tirei do local, ainda falta muito para que as construções se livrem do aspecto de cortiço que ainda têm, mas devemos comemorar o fato de o governo municipal ter tomado a iniciativa de salvar a Vila Itororó de uma degradação que poderia tornar-se irreversível se nada fosse feito.
Já que jogamos nossa indústria na caçamba, depois dos heroicos esforços que fizemos a partir da segunda metade do século XX para criá-la, e que o agronegócio brasileiro que compete globalmente não empregará muita gente devido à mecanização das lavouras, urge que encontremos meios de gerar empregos para nossa população para que o cenário vislumbrado pelos especialistas da FGV, de alto desemprego até 2026, conforme mencionado no último trecho que abre este artigo, não se concretize. Investir na recuperação do patrimônio arquitetônico degradado pelo descaso e pelo tempo seria uma forma de atrair visitantes e gerar empregos em restaurantes, bares e lojas no entorno dos locais revitalizados. Minha primeira sugestão na cidade de São Paulo seria resgatar os Campos Elíseos, que abriga a antiga sede do governo do Estado (restaurada, mas fechada ao público), vários palacetes do início do século XX, além de uma estátua gigantesca do Duque de Caxias de autoria de Victor Brecheret, do domínio dos craqueiros que se concentram na famigerada rua Helvétia e dos que acampam na praça onde está a escultura e até penduram roupas em um varal improvisado na parte de baixo da coluna realizada por Brecheret.
Prezados leitores, como mostra o destino da Grande Esfinge de Gizé e a nossa prosaica Vila Itororó, as areias do tempo não são uma maldição eterna. Podemos ressuscitar para a vida econômica e social construções esquecidas e quase destruídas e fazermos delas locais de memória coletiva do nosso passado e de construção do nosso futuro por meio da inclusão dos desempregados, dos desalojados e dos esfomeados que se espalham cada vez mais pela cidade de São Paulo. Oxalá nossos governantes achem meios de tornar a cultura algo mais do que mera perfumaria e a tornem bem valioso na era pós-covid.