Não devemos concluir que a moral é inútil porque ela muda de acordo com o tempo e o lugar, e que seria sábio mostrar nosso conhecimento histórico imediatamente desacatando as regras morais do grupo. Um pouco de antropologia é algo perigoso. Nossa rejeição heroica dos costumes e da moralidade da nossa tribo, quando descobrimos na adolescência que eles são relativos, revela a imaturidade da mente; mais uns dez anos e começamos a entender que pode haver mais sabedoria no código moral do grupo – a experiência formulada de gerações da raça – do que pode ser explicado em um curso na faculdade. Mais cedo ou mais tarde vem a constatação perturbadora de que mesmo aquilo que não conseguimos entender pode ser verdade. […] Temos razão em concluir que as regras morais são relativas, mas indispensáveis.
Trecho retirado do livro “Our Oriental Heritage” de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano
O selvagem de qualquer tribo indígena ou australiana considera sua cultura superior a todas as outras sem se preocupar em elaborar um discurso científico sobre elas, ao mesmo tempo que a etnologia quer se situar no campo da universalidade sem se dar conta de que em muitos aspectos ela está solidamente situada em sua particularidade, e que seu pseudodiscurso científico se degrada rapidamente em verdadeira ideologia. […] a velha convicção ocidental, frequentemente compartilhada pela etnologia, ou pelo menos por muitos daqueles que a praticam, é que a história tem um sentido único, que as sociedades sem poder são a imagem daquilo que nós não somos mais e que nossa cultura é para elas a imagem daquilo que deve ser.
Trecho retirado do ensaio “Copérnico e os Selvagens” do livro A Sociedade contra o Estado do antropólogo francês Pierre Clastres (1934-1977)
Prezados leitores, há um pouco mais de sete anos eu abordei o tema da antropologia neste meu humilde espaço, citando um trecho deste mesmo autor francês, Pierre Clastres, que realizou pesquisas de campo na América do Sul entre os índios guayaki, guarani e yanomami. Em 2014, eu questionava a utilidade do estudo da antropologia na universidade como atalho para a resolução dos problemas enfrentados pelas sociedades capitalistas. Hoje, retomo Clastres para uma abordagem com mais nuances do porquê ou não de estudarmos antropologia como parte da formação geral dada no primeiro ano dos estudos superiores. Para tanto, tentarei explicar a contribuição de Clastres para a antropologia política, que questiona tanto a visão marxista da política como superestrutura necessariamente derivada da infraestrutura econômica quanto a visão de muitos etnólogos ocidentais.
Meu ponto de partida será a crítica que o antropólogo francês, morto prematuramente aos 43 anos em um acidente de carro, faz do conceito de economia de subsistência, utilizado frequentemente para descrever o modo de produção econômica das tribos indígenas. A palavra subsistência implica falta de algo e sua utilização nesse contexto tem o propósito de descrever a economia indígena como carente de algo, a saber, do excedente. Os indígenas, de acordo com a explicação predominante, só conseguiam produzir o suficiente para satisfazer suas necessidades básicas mais prementes, mas não conseguiam produzir para acumular de forma que estivessem preparados para enfrentar períodos de desastres naturais, daí por que sua vida consistia no esforço de estabelecer um equilíbrio precário entre as necessidades alimentares do grupo e os meios de satisfazê-las.
Clastres se insurge contra essa descrição pejorativa da organização econômica dos índios, fruto do ponto de vista ocidental. Os índios produziam para satisfazer suas necessidades e só. Isso lhes era suficiente e não viam motivo para mudar seu modo de vida e passar a trabalhar muito mais para gerar excedentes. Mais importante, não foram constrangidos a fazê-lo, pois o poder político nas tribos indígenas era disperso e não coercitivo. Não havia uma entidade personificada na figura de um rei ou chefe supremo que tivesse poder reunido em sua pessoa para obrigar seus comandados a trabalhar mais para produzir mais. Os chefes indígenas tinham poderes durante o período de guerra, mas em épocas de paz os outros membros da tribo não permitiam que ninguém acumulasse poder de modo a conseguir coagir as pessoas a agir de determinado modo contra a vontade delas.
A antropologia política de Clastres representa um desafio tanto à visão marxista quanto à visão tradicional da etnologia. Para uns e outros há um desenvolvimento natural de um modo de vida de subsistência, em que os membros do grupo compartilham aquilo que é produzido, para um modo de vida em que o avanço técnico leva à produção de excedentes, que por sua vez leva à elaboração de estruturas sociais e políticas hierarquizadas, as quais serão responsáveis pela tomada de decisão sobre quem vai trabalhar ou não e como os excedentes serão distribuídos. Para o antropólogo francês a tal da economia de subsistência não foi fruto da incapacidade técnica dos indígenas de evoluir para uma forma mais sofisticada de produção econômica, mas uma escolha dos membros do grupo de não trabalhar mais, viabilizada pelo fato de não haver nenhuma força externa que tivesse o poder de impor essa mudança no regime econômico.
Daí o nome do livro de ensaios de Clastres: A Sociedade contra o Estado. Os indígenas impediram que houvesse concentração de poder e que surgisse o Estado com o poder de impor comportamentos a um grande número de pessoas. Se o Estado tivesse surgido como surgiu nas sociedades ocidentais, a produção de excedentes ocorreria porque seria imposta de fora para dentro. E como foi possível aos indígenas fazer isso? Clastres estabelece como causa provável o fato de não ter havido um crescimento demográfico que acabasse com a dispersão dos pequenos grupos e os colocasse mais juntos e portanto, mais suscetíveis a uma organização unificadora das diferenças.
Sob essa perspectiva, a organização da sociedade em classes sociais e a produção regular de excedentes não é o ápice da história, a evolução natural do homo sapiens da barbárie à civilização. Ela é uma entre várias alternativas que foi possibilitada por determinadas circunstâncias materiais que para o antropólogo francês são o surgimento de um poder político centralizado e o crescimento populacional.
Qual a utilidade de sabermos que o regime político e econômico ocidental não é a única rota que pode ser trilhada pelo homem? No artigo Maus Selvagens que escrevi em 2014 eu argumentei que saber que é possível viver de maneira a satisfazer nossas necessidades sob um regime de economia de “subsistência” (agora entre aspas para chamar a atenção para o viés ideológico dadefinição) não nos serve muito agora, em pleno século XXI, para resolvermos os problemas ambientais criados pela ênfase na produção ininterrupta de excedentes. Teremos que achar soluções dentro do nosso próprio sistema para enfrentar os desafios por ele criados, porque mudar radicalmente as bases da economia é impraticável. Em primeiro lugar atualmente temos quase 8 bilhões de bocas para sustentar no mundo. Em segundo lugar, as necessidades básicas de uma pessoa habituada ao conforto material proporcionado pela tecnologia do século XXI não são as mesmas daqueles que só precisavam alimentar-se e proteger-se dos elementos naturais.
Por outro lado, como Durant explica no trecho que abre este artigo, estudar a antropologia e com isso adquirir o conhecimento das infinitas possibilidade dos modos de organização social humana não deve nos levar ao niilismo relativista. Sim, não há nada de absoluto ou de fim da história em termos de como o homem se relaciona com seus semelhantes. Por outro lado, cada regime social criado ao longo da história é o fruto de escolhas feitas ao longo de gerações por seres humanos que enfrentaram determinados desafios e deram sua resposta a eles. Negar a sabedoria acumulada pela experiência de enfrentar a morte, as doenças, as catástrofes naturais ou acidentais porque ela não é a última palavra é negar o poder de criação do homem.
Prezados leitores, cada uma a seu modo as sociedades indígenas que viviam sem poder coercitivo e produzindo o suficiente para sua sobrevivência resolveram seus problemas tanto quanto as sociedades com poder estatal instituído que produziam excedentes. A lição ensinada por Clastres sobre a relativização das concepções ocidentais e a advertência dada por Durant sobre não deixar que a antropologia nos cegue sobre nossas próprias conquistas mostram o caminho: o meio termo entre valorizarmos aquilo que conseguimos construir ao longo da história enquanto grupo e percebermos que o que construímos não é o supra sumo das realizações humanas, pois houve quem criasse de outra maneira em outros tempos e outros lugares. Celebremos as diferenças sem triunfalismos, nem negacionismos. Apenas com a consciência de que tudo é relativo, mas ao mesmo tempo indispensável para sobrevivermos e prosperarmos no planeta Terra.