browser icon
You are using an insecure version of your web browser. Please update your browser!
Using an outdated browser makes your computer unsafe. For a safer, faster, more enjoyable user experience, please update your browser today or try a newer browser.

Condenados

Posted by on 26/10/2021

Provavelmente foi ao longo de séculos de escravidão que nossa raça adquiriu as tradições e os hábitos da labuta. Ninguém faria nenhum trabalho duro ou persistente se pudesse evitá-lo sem alguma punição física, econômica ou social. A escravidão tornou-se parte da disciplina pela qual o homem foi preparado para a indústria. De maneira indireta ela fez avançar a civilização, pelo fato de ter aumentado a riqueza e – para uma minoria – ter criado o lazer.

Trecho retirado do livro “Our Oriental Heritage” de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

 

Parece-nos que aí está um dos aspectos menos fraternos entre as classes dos dominadores e dominados. Os que ainda hoje lamentam, no Brasil, a expulsão dos holandeses do Nordeste talvez não tenham reparado convenientemente para esse aspecto. As antigas colônias portuguesas eram bem uma mostra do que teríamos que suportar dos flamengos: uma minoria de louros explorando e dominando um proletariado de gente de cor, ao contrário do que nos legaram os portugueses: uma terra de brancos confraternizando-se com negros e índios.

Trecho retirado do livro “Holandeses em Pernambuco: 1630-1654”, de Leonardo Dantas Silva, citando o historiador recifense José Antônio Gonsalves de Mello (1916-2002)

 

Mas o principal elemento para melhorar o PIB per capita, aponta a OCDE, é o avanço da produtividade do trabalho. Os países que melhoraram nos aspectos sociais e econômicos nas últimas décadas mostraram grandes ganhos na produtividade do trabalho, associados a altas taxas de investimentos. Não se observou isso no Brasil.

Trecho do editorial intitulado “Não somos um país condenado ao atraso” publicado no jornal “O Estado de São Paulo” em 24 de outubro

 

    Prezados leitores, a Grécia ficou para trás e agora os convido a compartilhar comigo as ideias elaboradas por Will Durant em um outro livro de sua série sobre a História das Civilizações. Em “Our Oriental Heritage”, Durant discorrer sobre as civilizações que se desenvolveram no Oriente Médio, no Egito, na Índia, na China e no Japão. E como entre elas estão as primeiras civilizações que o homem criou, Durant tenta estabelecer alguns princípios gerais para que houvesse a passagem da vida primitiva para a vida civilizada. Para ele os três fatores que devem estar presentes para este salto qualitativo são a fala articulada, a agricultura e a escrita. Meu humilde objetivo neste humilde artigo é deter-me sobre o papel da agricultura e suas implicações econômicas, sociais e culturais.

    A prática da agricultura permitiu ao homem mudar de patamar e ter condições de criar cultura, pelo fato de que deu à vida previsibilidade e segurança por meio da geração de excedentes alimentares, permitindo fazer planos para o futuro, o que não era possível quando o homo sapiens dedicava-se exclusivamente à caça e à coleta. A vida do caçador é incerta e insegura: ele pode voltar com um belo animal morto que será compartilhado com os membros da tribo, ou pode voltar de mãos vazias, ou pode mesmo não voltar, tendo sido vencido pelo alvo da sua caçada. Seu trabalho é exaustivo e feito de espasmos: ele precisa correr, cobrir grandes espaços, subir em árvores e observar, aguardar o melhor momento, estar sempre alerta aos perigos. A agricultura, ao contrário, requer um outro tipo de trabalho: o trabalho metódico e regular de preparar o solo para o plantio, semear e colher.

    E é por isso que a agricultura causa um grande impacto econômico e social, de acordo com Durant. Para ele, o cultivo de plantas leva necessariamente à instituição da escravidão, pois o trabalho ininterrupto de sol a sol contando unicamente com a força dos músculos não seria feito de bom grado por ninguém, a não ser se lhe fosse imposto. Apesar do risco de morte envolvido na caça, ela implica uma atividade física variada e cheia de surpresas agradáveis e desagradáveis, ao passo que a agricultura é sempre a rotina monótona que mói o corpo.

    Assim, a necessidade de forçar as pessoas a tornarem-se trabalhadores agrícolas cria as primeiras divisões de classe entre os que eram forçados ao ingrato trabalho agrícola e os que forçavam outros a ele. Com o aumento da riqueza proporcionada pela produção agrícola que podia ser armazenada, surgem mais oportunidades para aqueles livres do trabalho no campo e naturalmente dotados de mostrarem suas habilidades, levando a uma maior divisão de tarefas e a um aumento ainda maior da distância entre os que trabalhavam a terra e aqueles que usufruíam da garantia de suprimentos alimentares para dedicar-se à criação da cultura.

    Agricultura e escravidão juntas levam à destruição do antigo modelo comunista normalmente encontrado nas sociedades caçadoras-coletoras, em que tudo era dividido irmanamente, rumo à especialização, à criação de riquezas e à apropriação dessa riqueza pela instituição da propriedade privada. De acordo com a explicação de Durant, não teria sido possível a civilização sem a escravidão. Nesse sentido, no mundo de hoje, em que muitos pensam, por falta de conhecimento histórico ou por motivos ideológicos, que a escravidão foi instituída pelos brancos contra os negros no quadro do desenvolvimento inicial do capitalismo, a lição de Durant mostra que o homem estava condenado a criar a escravidão para criar riqueza e com isso a cultura e a civilização.

    Sob essa perspectiva, nosso Brasil tropical, quente e úmido na maior parte do ano, também estava condenado a ter a escravidão instituída aqui. Não nos iludamos: não teria havido produção agrícola em larga escala no que hoje é o Brasil se os portugueses não tivessem importado os africanos subsaarianos, geneticamente adaptados ao calor, para serem imolados no altar das plantations. Como mencionei aqui há duas semanas, João Maurício de Nassau-Siegen (1604-1679), capitão e almirante-geral do Brasil Holandês, tratou logo de capturar possessões portuguesas na África para poder ter acesso a negros africanos escravizados e garantir que as lavouras de cana de açúcar, a principal riqueza da terra, fossem devidamente abastecidas com mão de obra.

    Sem escravos o Brasil não teria sido viável economicamente e José Antônio Goncalves de Mello nos ensina que tanto portugueses quanto os holandeses sabiam disso. Os flamengos podiam estar no século XVII na vanguarda do comércio internacional, Amsterdã certamente era uma cidade mais rica, mais tolerante e mais cosmopolita que Lisboa, os portugueses dependiam dos flamengos para comercializar o açúcar e, no entanto, uns e outros fizeram a mesma coisa em cá chegando: trataram de arranjar mão de obra escrava.

    Considerando que a invenção da agricultura condenou uma grande parte da humanidade à escravidão e à exploração ao mesmo tempo que liberou uma minoria para a criação da civilização, ela teve influências sobre a economia, na produção e alocação de excedentes, na sociedade, criando as classes sociais e na cultura, viabilizando o tempo livre necessário à criação intelectual. Sob essa perspectiva, o Brasil, fundado há pouco mais de 500 anos sobre a base da escravidão necessária ao estabelecimento das monoculturas de exportação, também sofreu tais impactos.

    Entre eles está aquele tratado no editorial do Estadão, que descreve as conclusões de um estudo da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico. O Brasil condena seus habitantes a uma baixa qualidade de vida porque não consegue aumentar a produtividade do trabalho e não investe, fazendo com que não haja crescimento econômico, geração de empregos e aumento real de salários.

    Prezados leitores, não será o círculo vicioso de baixa formação, baixo capital intelectual, pouca inovação, baixa produtividade, pouco crescimento e pouca renda em que vira e mexe estamos metidos um resquício dos séculos em que a maioria da população brasileira era de escravos? Será que nossa mentalidade e nossas práticas sociais não estão impregnadas dos valores da escravidão que nos condenam ao atraso? Será que o mal necessário que foi a escravidão para que o Brasil existisse sempre fará parte do nosso comportamento individual e social?

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *