Não penses que o castelo do governo consiste de fortalezas, muralhas e trincheiras: ele se encontra no interior das consciências. […] A grandeza dos Estados não pode ser medida pelas extensões territoriais e latifúndios, mas pela lealdade, benevolência e respeito dos habitantes.
Trecho do discurso de despedida do Brasil pronunciado em 1644 por João Maurício de Nassau-Siegen (1604-1679), capitão e almirante-geral do Brasil Holandês e citado no livro Holandeses em Pernambuco: 1630-1654 de Leonardo Dantas Silva
Decadentes com a guerra, endividados pelas altas taxas de juros que lhes eram cobradas, mas com o controle da produção do açúcar, esses senhores vieram a ser os responsáveis pelo declínio e perda do Brasil Holandês.
Trecho retirado do livro Holandeses em Pernambuco: 1630-1654 de Leonardo Dantas Silva
[…] na esteira de regimes escancaradamente brutais, como o nazismo, ou dissimulados mas também cruelmente eficazes, como os autoritarismos do Terceiro Mundo, requer-se certo esforço de reflexão para conceber a simbiose entre a carreira militar e o humanismo que caracterizava a antiga cultura aristocrática.
Trecho retirado do livro Nassau de Evaldo Cabral de Melo, escrito para a série Perfis Brasileiros
Prezados leitores, na semana passada eu expus a ideia do que seria um regime político estável para Aristóteles, citando uma passagem do filósofo grego em que ele defende que a dominação da administração dos negócios públicos seja pelos mais ricos seja pelos mais pobres leva à tirania: no primeiro caso haverá concentração de riqueza e poder nas mãos de uma minoria, que se utilizará do seu poder de fogo para organizar a sociedade de acordo com seus próprios interesses, e no segundo caso a maioria de pobres fará valer sua voz por meio das instituições democráticas para vingar-se dos ricos e distribuir o dinheiro destes à força, levando à destruição da estrutura econômica. Assim, a estabilidade de qualquer regime político exige que haja uma classe média suficientemente robusta para servir de contrapeso às tendências de radicalização nos polos extremos da sociedade.
Nesta semana meu objetivo é abordar um outro aspecto da estabilidade, qual seja, a adesão dos habitantes ao regime político, manifestada na boa vontade que mostram em fazer com que o sistema funcione. Para tanto, chamo a atenção para certos aspectos da breve passagem de João Maurício de Nassau pelo Brasil (1637-1644), como governador do Brasil Holandês, que compreendia desde o rio São Francisco na Bahia, até o Maranhão.
Não há dúvida de que Nassau, depois de consolidar o controle militar holandês após a guerra de conquista das áreas produtoras de açúcar, procurou fazer com que a economia da colônia voltasse a funcionar. Para tanto, conforme explica Leonardo Silva em seu livro que reconta a história da presença holandesa no Brasil, João Maurício de Nassau colocou à venda engenhos pertencentes a luso-brasileiros que haviam sido abandonados e estavam em ruínas. Concedeu empréstimos aos produtores de açúcar para a recuperação das fábricas e dos campos e para a compra de escravos que repusessem a mão de obra perdida com fugas e mortes. Para garantir o suprimento de escravos aos engenhos, empreendeu expedições militares em possessões portuguesas na África (São Jorge da Mina, Golfo da Guiné, São Paulo de Luanda), levando a um aumento na importação de negros pela Companhia das Índias Ocidentais, que monopolizava tal comércio e que havia nomeado Nassau para o cargo de governador, capitão e almirante-geral das terras conquistadas no Brasil.
Como mostra Evaldo Cabral de Melo em sua biografia deste conde nascido em Dillenburg que nos governou por sete anos, Nassau tinha uma formação humanista e cultivou ao longo da vida uma paixão pela jardinagem e pela paisagem, de acordo com o ideal de subordinação das armas à contemplação da natureza. Em 1642, Nassau fez plantar um jardim no Recife com pomar, açudes para a criação de peixes em cativeiro e animais. Tal jardim serviu de laboratório para membros da comitiva que o acompanhou ao Brasil, como o médico Willem Piso (1611-1678), o botânico, cartógrafo e astrônomo George Marcgrave (1610-1644) e o artista Albert Eckhout (1610-1664). Como resultado surgiram o Historia naturalis Brasiliae, o Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae, os Manuais e o Miscellanea Cleyeri com desenhos de animais, plantas, flores, frutos e figuras humanas. O Theatrum encontra-se atualmente na Biblioteca Jagelônica de Cracóvia, na Polônia.
Esses valores humanistas também transparecem em muitas das obras que Nassau legou ao Brasil, a começar pela Cidade Maurícia ou Mauritstaad, na ilha de Antônio Vaz, projetada por Pier Post e que abrigava várias construções: o palácio de Friburgo ou palácio das Torres (construído em 1643 demolido no final do século XVIII em 1787, do qual hoje resta uma placa em uma praça em frente ao Palácio do Campo das Princesas, sede do governo do Estado de Pernambuco); o Palácio da Boa Vista (construído em 1643 e do qual hoje há restos) e o primeiro observatório das Américas. Para a população de baixa renda o governador fez construir a Nova Maurícia ou Nieuw Mauritsstad, entre a atual Igreja do Divino Espírito Santo, no Recife, e o forte das Cinco Pontas.
Tantas realizações, típicas de um homem com sólida formação intelectual que colocou em prática aquilo para o qual havia sido educado, realizando assim suas aspirações humanistas. E no entanto, como ele mesmo reconheceu em sua despedida do Brasil, a estabilidade e a prosperidade de um Estado requer que os governantes conquistem o coração dos habitantes e isso os holandeses não souberam fazer. Os senhores de engenho nunca aceitaram a presença estrangeira no país, seja porque deviam muito dinheiro à Companhia das Índias Ocidentais, seja porque os luso-brasileiros e neerlandeses nutriam aversão mútua. Se a princípio os luso-brasileiros recuaram e fugiram para outras regiões onde não havia a presença holandesa, o fato é que eles continuaram a controlar a principal atividade econômica, a produção de açúcar, o que na prática colocou os conquistadores em uma posição isolada econômica e geograficamente: os neerlandeses concentravam-se no Recife, a cidade reurbanizada e embelezada por João Maurício, e dedicavam-se ao comércio. Com o tempo, o ressentimento criado pela exigência da Companhia das Índias Ocidentais de receber cada tostão emprestado aos senhores de engenho e o fato de os habitantes da terra terem uma presença em todo o interior do território deu aos luso-brasileiros o ímpeto para iniciar uma guerrilha nativista e aos poucos desafiar a supremacia militar holandesa, o que culminou com a expulsão definitiva dos holandeses em 1654, dez anos depois da saída de Nassau, descontente que estava com os rumos puramente mercantilistas que a WIC dava ao empreendimento colonial no Brasil, que para João Maurício, inviabilizava qualquer possibilidade de ganhar a adesão dos habitantes e portanto uma presença de longo prazo.
Prezados leitores, a lição que fica para nós que estamos em pleno século XXI tentando manter nosso regime político em meio à inflação, ao desemprego e ao aumento da pobreza é que há uma dimensão da estabilidade que vai além das condições materiais da vida: sem a boa vontade dos governados para acatar as decisões dos governantes, para colaborar em prol daquilo que foi decidido como o rumo a ser seguido, resta aos que estão no poder lidar com o comportamento de guerrilha daqueles que não têm compromisso nenhum com o que está sendo proposto e que com sua má vontade sistemática acabam minando as bases do regime vigente. Será que nós brasileiros conseguiremos ser benevolentes, leais e respeitosos com quem quer que seja eleito no ano que vem ou continuaremos com má vontade e empregando nossas táticas de guerrilha, entre elas o uso do Judiciário para tentar ganhar disputas políticas por outros meios? Aguardemos.