O verdadeiro patriota em uma democracia deve tomar cuidado para que a maioria não fique muito pobre… ele deve envidar esforços para que eles possam usufruir prosperidade eterna; e pelo fato de isso ser vantajoso para os ricos, o que pode ser salvo do dinheiro público deve ser dividido entre os pobres em tal quantidade que possa permitir-lhes comprar um pequeno lote de terra. […]Sempre que o número daqueles no estrato médio da sociedade tornou-se pequeno demais, aqueles que eram mais numerosos, sejam os ricos ou os pobres, sempre os subjugaram e assumiram eles mesmos a administração dos negócios públicos … Sempre que ou os ricos dominam os pobres ou os pobres dominam os ricos, nenhum deles estabelecerá um estado livre.
Trechos retirados do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano, citando o filósofo grego Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.)
Basicamente a filosofia americana é que a maneira de impedir o desenvolvimento de uma classe média independente é mantê-la tão endividada que ela tem que trabalhar e fazer dívidas ou então abandonar uma educação cara, não ser contratado e passar fome.
Trecho da fala sobre os empréstimos estudantis nos Estados Unidos de autoria de Michael Hudson (1939-), economista americano e professor da Universidade de Missouri, em sua conversa com Thomas Piketty (1971-), economista francês autor do livro “O Capitalismo no Século XXI”
Prezados leitores, para uma pessoa que como eu foi criança na década de 1980, passou por n planos econômicos e lembra da pasta que Ernane Galvêas (1922-), Ministro da Fazenda do Brasil de 1980 a 1985, carregava nas suas idas a Washington para negociar novos empréstimos com o FMI, é difícil acreditar em economistas. Nós seguimos muitas receitas de economistas ao longo das última quatro décadas: planos ortodoxos, planos heterodoxos, desindexações, paridade cambial, arrochos salariais, aumento de impostos, alta das taxas de juros, limitações à aposentadoria, teto fiscal.
Os magos da economia e seus defensores na imprensa nunca deixaram de prometer o caminho da prosperidade e do desenvolvimento se nós fizéssemos os sacrifícios que eles nos propunham e agíssemos com o bom senso que eles nos mostravam com condescendência. No mais das vezes, o que nos foi entregue foram períodos de prosperidade seguidos de grandes ressacas. Assim ocorreu com o milagre econômico de 1969-1973, que foi seguido por dois choques do petróleo, em 1973 e 1979; e mais recentemente, no boom das commodities de 2000 a 2014, que foi seguido por um período de recessão econômica entre 2014 e 2016 e agora pela crise da pandemia de COVID-19.
No entanto, há um economista que não deixo de ler e de ouvir justamente porque o que ele propõe nunca será executado, a não ser que a situação chegue ao extremo que descreveu Aristóteles há mais de 2.000 anos, conforme o trecho que abre este artigo: quando a classe média se tornar tão inexpressiva que só restará o radicalismo, seja dos ricos concentrando toda a riqueza, seja dos pobres, tomando dos outros por meio da revolução. Refiro-me a Michael Hudson, que no dia 26 de setembro trocou ideias com Thomas Piketty sobre a desigualdade e os impactos dela no mundo. O foco de Hudson são os Estados Unidos, mas as lições que ele dá podem ser muito bem aproveitadas por nós brasileiros, como tentarei mostrar aqui explicando as ideias dele.
Foi-se o tempo do capitalismo industrial, que gerava empregos, consumo e renda, num círculo virtuoso de aumento do bolo para todos, conforme ocorreu nos Estados Unidos desde o século XIX até a década de 60 do século XX. Agora o que predomina, mais acentuadamente desde as duas últimas décadas do século XX, é o capitalismo financeiro, isto é, o cerne da atividade econômica sai da produção para a intermediação financeira, que como antípoda do primeiro tem seu próprio círculo vicioso: desemprego, perda do poder de compra e dívida, para compensar a perda do poder de compra. A intermediação financeira está em toda parte: quem quer comprar uma casa ou carro pega um empréstimo no banco e dá como garantia a casa ou carro financiado; quem quer comprar bens de consumo não duráveis usa o cartão de crédito e vai pagando as prestações a perder de vista, com os juros embutidos; quem quer frequentar o ensino superior contrata um empréstimo e ao terminar a faculdade já sai endividado e a única maneira de honrar a dívida é conseguir um emprego, sendo obrigado a comprometer uma parte da renda do salário com o pagamento do principal e dos juros por anos a fio.
A predominância desse tipo de capitalismo é possível porque o governo, dominado pela agenda do 1% da população mais rica, viabiliza essa ciranda financeira. Os bens públicos, como serviços de água, eletricidade, esgoto, transporte, são vendidos a bem do enxugamento da máquina estatal e viram monopólios privados, que cobram as tarifas altas o suficiente para cobrir o custo dos empréstimos que as empresas tomam para adquirir tais monopólios. Quando o Banco Central americano atua para estimular a economia com juros baixos, esse excesso de liquidez é capturado pelas instituições financeiras, que reciclam esse dinheiro para empresas comprarem outras empresas ou para fecharem o seu próprio capital, comprando suas próprias ações na bolsa para aumentar o lucro dos executivos que são remunerados em parte com bônus de ações. Quando tais instituições emprestam para indivíduos, elas o fazem sempre mediante garantia de algum ativo, o que leva ao aumento do preço dos imóveis, criando uma falsa sensação de riqueza, pois que o valor do imóvel será sempre proporcional à hipoteca que recai sobre ele.
Não havendo investimentos na produção de bens reais, não há geração de empregos que agregam valor ao longo da cadeia industrial. A classe média consegue manter-se à tona unicamente na base dos empréstimos que são eternamente rolados. Assim, tem-se uma divisão clara entre o 1% credor que concentra o capital e ganha dinheiro pela multiplicação do capital emprestado devido aos juros compostos que incidem sobre os empréstimos, e os 99% que concentram as dívidas e têm pouca ou nenhuma renda disponível quando descontadas as despesas obrigatórias com amortização de dívidas e pagamentos por serviços não fornecidos pelo Estado, como saúde e educação.
Tanto Hudson quanto Piketty concordam que há uma desigualdade cada vez maior devido a esse círculo vicioso financeiro. Eles divergem, no entanto, sobre o que fazer. Para Piketty, é preciso taxar a riqueza e distribui-la, tal como preconizou Aristóteles em sua receita para um regime estável de governo. Hudson considera ser isso inviável, pois os ricos sabem esconder seus proventos: eles criam empresas em paraísos fiscais e recebem dividendos como acionistas e conseguem camuflar o lucro por meio de esquemas de preços de transferência pelos quais a receita da pessoa jurídica é gerada para fins contábeis em jurisdições em que a renda é pouco taxada. Para ele, a única maneira de fazer com que a classe média dos Estados Unidos possa ser colocada de novo de pé, livrando-a dos grilhões que a encerram, é um cancelamento unilateral das dívidas, sejam hipotecas, empréstimos estudantis, financiamento de veículo. É claro que no atual sistema político americano, em que os interesses da maioria da população não são levados em conta, não há chances de isso ocorrer: o resultado será mais desigualdade, mais concentração de poder nas mãos dos ricos e, como ensinou Aristóteles, mais tirania e menos liberdade.
Nesse sentido, o filósofo grego considerava que o sistema ideal era aquele em que os membros da classe média fossem em um número tal que fizesse com que a maioria da população tivesse interesse em manter a paz e a prosperidade pelo fato de que cada um dos cidadãos tinha algo a perder se houvesse violência e revolução. Numa situação em que uns têm tudo a perder e outros têm tudo a ganhar se as coisas forem mantidas exatamente como estão ou se forem modificadas totalmente, a instabilidade torna-se uma constante e com ela a tendência ao radicalismo dos poucos privilegiados ou dos muitos oprimidos.
Prezados leitores, considerando que por aqui no Brasil estamos aparentemente voltando à época da estagflação dos anos 80, com alto desemprego, corrosão do valor da moeda e do poder de compra, a descrição dos problemas econômicos dos Estados Unidos por Michael Hudson e as lições de Aristóteles sobre os desafios de qualquer regime político levam-nos a perguntar: o que será da nossa democracia nos próximos anos? Será que ela sobreviverá incólume a uma ou talvez mais de uma década perdida?