Despertando nossos sentimentos mais profundos e depois acalmando-os por meio de um desenlace apaziguador, o drama trágico nos oferece uma expressão, inofensiva e ao mesmo tempo capaz de atingir as profundezas da nossa alma, de emoções que de outra forma se acumulariam como neurose ou violência; ele mostra dores e tristezas maiores que as nossas e nos manda para casa de alma limpa e purificada.
Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano, explicando o pensamento estético de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.)
Um mundo inteiramente sem arte seria pior do que invisível, inaudível, inefável e intangível. Seria um mundo sem a dimensão temporal, seria um mundo do qual a mente humana não conseguiria lembrar. A memória do homem é única na sua capacidade não somente de recordar, mas também de utilizar o passado e aplicá-lo; e melhor ainda, recriá-lo, de forma a tornar-se parte do momento presente, o que é o mais perto da eternidade a que podemos chegar. A memória humana é nada menos do que a origem da arte.
Trecho retirado do artigo “The World of Art”, escrito por Mark Van Doren (1894-1972), poeta e crítico literário americano, para a edição de 1974 da Enciclopédia Britânica
Prezados leitores, na semana passada eu lhes apresentei a personagem Lukéria de Turguêniev, uma camponesa de destino trágico que enfrenta o sofrimento e a solidão criando para si um ambiente de paz e de beleza em que a fruição dos sons e das cores ao seu redor lhe permitia não cair no desespero. A sabedoria e resignação da moça eram instintivas, fruto da fé cristã e da vivência cotidiana de opressão e injustiça dos servos na Rússia do século XIX. Devo neste momento acrescentar uma informação que será pertinente para meu tema de hoje, qual seja, a função da arte na vida do homem enquanto indivíduo. Quando li o conto “Relíquia Viva” chorei copiosamente, passando pelo rito de catarse detalhado há mais de dois mil anos por Aristóteles na sua obra “Poética”.
Conforme o trecho que abre este humilde artigo, explicando o modo de funcionamento da tragédia, a dor e a injustiça do amor e da vida perdidos por Lukéria devido ao seu acidente reavivaram em mim experiências passadas. Não que eu tenha sido algum dia uma camponesa trabalhando de sol a sol e sem acesso a nenhuma assistência médica como era o caso da heroína de Turguêniev. Longe disso. Tive o privilégio de nascer no século XX e ter tido anos de estudo que me permitiram ter um emprego que não me leva à exaustão física. Por outro lado, a descrição do autor é tal que, apesar dos quase duzentos anos que me separam de Lukéria, eu consigo me identificar com ela porque como ser humano que sou, guardadas as devidas proporções, já sofri e me senti injustiçada.
Daí que quando a descrição que Lukéria faz da sua humilde vida ao seu patrão, fechada em um galpão sem poder movimentar-se e definhando aos poucos, foi despertando em mim uma emoção profunda, que culminou no choro. Eu qualifico essa experiência como catártica porque, como explica Aristóteles, o receptor da arte, seja o leitor, o ouvinte, o espectador, sai dela melhor do que entrou: ele aprende algo novo sobre si mesmo que o tranquiliza, pois o conecta à experiência de outros indivíduos que partilham a mesma natureza. A moral da história é que meus dissabores são colocados no seu devido lugar: não são nem maiores nem piores do que aqueles vividos por outros homens e mulheres antes de mim.
Sob essa perspectiva, não é de estranhar que os gregos fizeram a Memória, a deusa Mnemosine, por meio de sua conjunção com Zeus, a mãe das Musas, as nove deusas que presidiam as artes liberais na mitologia, conforme explica Mark Van Doren em seu artigo. Criar e experimentar a arte são ambos atos de rememoração de um momento, de uma situação, de um sentimento que já foram vividos, e que recebendo uma expressão artística renascem a cada vez que tal expressão é capaz de despertá-los no receptor. Portanto, sem memória para inspirar a produção da arte pelo autor e sua fruição pelo receptor não há obra artística e sem obras artísticas o mundo não se tornaria presente para o homem. Nossa experiência da realidade seria uma impressão fugaz que jamais se consolidaria na nossa mente, pois seria desprovida do sentido dado por sua expressão formal e do valor dado pelas emoções que atribuímos a ela e que a expressão formal permite sejam gravadas para sempre em nossa memória.
A função da arte, independentemente do seu papel na conscientização sobre o cenário político, econômico e social, foi lembrada em um artigo publicado na revista The Economist, edição de 21-27 de agosto, que menciona o livro escrito por Joseph Luzzi “In a Dark Wood”, publicado em 2015, que conta como a Divina Comédia de Dante Alighieri (1265-1321) ajudou o autor a lidar com a morte da esposa, Katherine Mester, grávida de oito meses e atropelada por uma van quando saía de um posto de gasolina.
Assim como o poeta italiano teve a vida despedaçada quando foi exilado de Florença em 1301, devido a disputas políticas, Joseph se viu de repente um viúvo e pai de uma bebê que nasceu de uma cesariana de emergência realizada em Katherine. A dor de Dante em perder tudo que lhe era caro, expressa nos versos da Divina Comédia, é a dor do professor do Bard College ao perder sua mulher. Desse modo, o luto vivido por Dante e recriado por meio de usa obra-prima é relembrado e presentificado por Joseph ao lê-la quase 700 anos depois. E nesse rito a experiência humana ao longo dos séculos e das diferentes civilizações que foram criadas e destruídas no curso da História se torna sempre única a cada nova presentificação e ao mesmo tempo universal pela sua eterna rememoração. Mnemosine e as Musas, mãe e filhas, inseparáveis.
Prezados leitores, para Aristóteles “a natureza exige que devamos ser adequadamente empregados, mas que sejamos capazes de aproveitar o lazer de maneira honrosa”. Se Lukéria o fazia contemplando a Natureza até onde lhe era possível, dadas suas limitações físicas, hoje na nossa realidade urbana reencenar o mito de Mnemosine engendrando as Musas, a Memória originando a Arte, e assim nos conectar à humanidade como um todo por meio da beleza é o meio mais factível de viver uma vida feliz, como pregava o filósofo grego. Que esses tempos de ansiedade e angústia causadas pela pandemia da covid-19 sirvam para que possamos perceber a função da arte na nossa vida.