O círculo é o convívio preguiçoso e indolente ao qual se dá significado e aspecto de algo racional; o círculo substitui a conversa pelo debate, acostuma à tagarelice infrutífera, distrai do trabalho solitário e benéfico, inculca a sarna da literatura; e é claro que priva do frescor e da força virgem da alma. O círculo é torpeza e tédio sob o nome de fraternidade e amizade, a união do equívoco e da pretensão sob pretexto de franqueza e colaboração; no círculo, graças ao direito dado a todo participante de enfiar os dedos sujos no interior de seu camarada em qualquer hora ou ocasião, não sobra lugar limpo ou intacto na alma de ninguém; no círculo são reverenciados os de lábia vazia, os sabichões cheios de si, os velhos antes do tempo, elevam os versejadores sem talento, mas com ideais “ocultas”; no círculo, jovenzinhos de dezessete anos falam de mulheres e de amor com astúcia e sofisticação, mas quando estão diante delas, ficam calados, ou se expressam como nos livros – e do que falam! No círculo floresce a eloquência artificial; no círculo um vigia o outro como policial…
Trecho retirado do conto “Hamlet do distrito de Schigrí” incluído no livro de contos Memórias de um caçador, do escritor russo Ivan Turguêniev (1818-1883)
Em 1879, Turgueniêv foi chamado de “paladino da liberdade” ao receber o título de doutor honoris causa, em Oxford. Em ensaio do mesmo ano, Henry James saúda-o como ”the novelist’s novelist” e, para compreensão do leitor norte-americano, equipara-o a um senhor de escravos da Virgínia ou da Carolina que tivesse adotado pontos de vista “nortistas”. James compara a relevância das Memórias para o fim da servidão na Rússia cm o papel de A cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe (1852), na abolição da escravidão no EUA, “com a diferença, contudo, de não ter produzido agitação na época – de ter, em vez disso, apresentado o caso como uma arte insidiosa demais para reconhecimento imediato, uma arte que mexia mais com as profundezas que com a superfície”.
Trecho retirado do posfácio da edição brasileira de Memórias de um caçador, escrito pelo tradutor, Irineu Franco Perpétuo
Prezados leitores, na semana passada eu falei sobre os sofistas gregos e seu papel fundamental no desenvolvimento da democracia grega, para o bem e para o mal, isto é, tanto contribuindo para dar uma voz articulada e convincente aos que defendiam os interesses do povo na Assembleia, quanto para dar a oportunidade a políticos ambiciosos e imorais de apresentar seus interesses particulares com um verniz de racionalidade que acabava levando os cidadãos a fazer escolhas que em última análise contrariavam seus interesses. Para o filósofo Sócrates (470 a.C.-399 a.C.), o problema da democracia é que ela acaba sendo dominada pelos políticos, e não pelo povo.
Nesta semana, meu foco não será na influência da filosofia, mas da literatura, sobre a vida política. O livro do qual foi retirado o trecho acima foi considerado tão subversivo que o autor ficou um mês preso em São Petersburgo e depois foi mandado para Spasskoye, em uma espécie de exílio interno como punição por ter criticado a servidão. Meu objetivo aqui será humildemente mostrar porque Memórias de um Caçador tem esse poder.
Turguêniev não expõe em nenhum dos 25 contos do livro uma filosofia política ou econômica, quer seja a defesa de uma maior participação do povo nas decisões sobre o destino da nação, ou a defesa de uma redistribuição da riqueza. Longe disso, como bem define Henry James no trecho que abre este artigo, o caçador, que narra suas experiências de vida e seus encontros com mujiques e com outros proprietários de terras e donos de mujiques como ele, é um nobre que vive a vida de um membro da sua classe: diverte-se caçando no verão, compra cavalos, frequenta a casa de outros nobres, participa de festas e banquetes.
Por outro lado, embora legítimo representante do círculo de bem nascidos, o caçador-narrador é um observador que sai da sua redoma, vê o que acontece com as pessoas, as ouve e tem uma profunda simpatia por elas como seres humanos, simpatia esta que ele demonstra rememorando seu encontro com elas, os desejos, frustrações e sentimentos que elas expressaram ou que elas mostraram em determinado momento.
Assim é que em “O encontro”, o caçador flagra uma bonita camponesa colhendo flores para dar ao seu amado. Seu nome é Akulina e ela é apaixonada por um mordomo, Viktor Aleksándritch, que a trata com arrogância e desprezo. Viktor recebe o humilde presente de mal grado, e como as flores só têm valor estético e não monetário, ele as joga fora, pois não quer identificar-se com a pobreza de Akulina. O narrador, testemunha involuntária da interação do casal por estar no campo descansando, percebe o quanto a moça sofre com a indiferença do mordomo, que está prestes a seguir seu patrão para Moscou. Ele vê beleza e pureza de sentimentos na camponesa e quando Viktor vai embora, surdo às súplicas da amada, o caçador colhe flores e as oferece à moça, para consolá-la.
Em outro conto, o narrador serve de confessor a um homem que se encontra em uma casa de posta, Piotr Petróvitch Karataíev, que vive durante um tempo em mancebia com Matriona Fiódorovna. Ele tenta comprá-la de sua patroa, Mária Ilínitchna mas esta, uma velha rabugenta, não admite vendê-la porque para ela alforriar servos é “indecoroso”, “é a desordem”. Depois de frustrada sua tentativa e incapaz de tomar a decisão de casar com a moça, Piotr vive com Matriona às escondidas até que a serva é descoberta e levada de volta à patroa. Cabe ao leitor do conto imaginar o que deve ter sido a vingança de Mária Ilínitchna contra a moça que tentou ser dona do seu humilde destino. Piotr conta sua história ao narrador porque a culpa lhe pesa, mas fica claro que se a história se repetisse ele seria o mesmo covarde e desastrado e causaria a ruína da mujique novamente, porque essa é a sua personalidade.
O primeiro trecho que abre este artigo é de autoria de um nobre falido, cujo nome não é mencionado, mas que calha de estar hospedado na mesma casa que o narrador e de estar dormindo no mesmo quarto de hóspedes. Ele precisa desabafar com alguém e mais uma vez o narrador é escolhido para escutar um drama humano: herdeiro de uma propriedade, o Hamlet do conto frequenta a universidade em Moscou e lá entra no grupo de membros da elite que adquirem um verniz de educação que lhes serve para pertencer ao círculo, isto é, para distingui-los da massa de servos porque conseguem citar um ou outro autor importante e falam sobre literatura mostrando que são refinados. Ao mesmo tempo, pertencer ao círculo é pertencer a um grupo de pessoas que se perde em argumentos retóricos tirados de pensadores europeus que elas sabem – conforme o próprio nobre confessa ao caçador-narrador, jamais serão aplicados para analisar a realidade da Rússia e aplicar o conhecimento e a ciência à vida dos russos.
Daí o caráter insidioso da arte de Turguêniev: ao mostrar um momento na vida de mujiques e senhores de terra, ele expõe as injustiças sociais de maneira flagrante, porque recorta da rotina de ambas as classes um instante em que a verdade sobre a natureza das relações sociais em uma sociedade de senhores e servos é revelada: aquele em que o servo é tratado como objeto do qual o patrão põe e dispõe, aprisionando-o e destruindo-lhe os sonhos, como no caso de Matriona, ou aquele em que o nobre se compraz em depreciar-se como o Hamlet de Schigrín, que sabe ter nascido em berço esplêndido, e que desperdiçou sua vida por preguiça e indolência não fazendo nada nem por si nem pelos outros, mas consegue ir vivendo porque suas faltas lhe são facilmente perdoadas.
Não é de estranhar que aquele cotidiano retratado por Turguêniev, feito de pequenas crueldades, covardias, gestos prepotentes, condescendência e racionalizações sobre a ordem e o amor do pai aos filhos, tenha tido o efeito de chamar a atenção da sociedade russa sobre a servidão e suas mazelas. A descrição do autor de Memórias de um Caçador da vida como ela era prescindia de grandiosos discursos políticos ou econômicos sobre as virtudes da liberdade. Bastava que o gênio do autor fizesse o leitor sentir o que sentiu Akulina ao ser preterida pelo amor da sua vida por ser serva ou o que Matriona sentiu ao ser devolvida à patroa para que a literatura fosse mais do que sinal distintivo de pertencimento ao círculo dos privilegiados e se transformasse em instrumento de conscientização moral.
Prezados leitores, nem só de ideias se fazem as transformações sociais e políticas. Como mostra a influência da obra de Turguêniev sobre o movimento de emancipação dos servos na Rússia do final do século XIX, basta romper a bolha do círculo e fazer cada indivíduo encontrar-se com a humanidade que há em todos nós.