No frigir dos ovos, os sofistas devem ser considerados como um dos fatores mais vitais da história da Grécia. Eles inventaram a gramática e a lógica para a Europa; elaboraram a dialética, analisaram os tipos de argumento e ensinaram aos homens como detectar e praticar falácias. […] Ao aplicar a lógica à linguagem, os sofistas promoveram a clareza e a acurácia do pensamento, facilitando a transmissão precisa do conhecimento. […] Eles aplicavam a análise a tudo e recusavam-se a respeitar tradições que não podiam ser respaldadas pela evidência dos sentidos ou pela lógica da razão […] O anúncio da relatividade do conhecimento não tornou os homens modestos, como deveria tê-lo feito, mas levou cada indivíduo a considerar-se a medida de todas as coisas; qualquer jovem inteligente poderia agora sentir-se apto a julgar o código moral do seu povo, rejeitá-lo se não o entendesse e não o aprovasse, fincando então livre para racionalizar seus desejos como virtudes de uma alma emancipada.
Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano
Prezados leitores, em nossas parcas lições de filosofia na escola, pelo menos na época em que lá passei, normalmente tomava-se uma frase emblemática de uma escola de pensamento para ilustrar o que ela propôs. “O homem é a medida de todas as coisas”, incluída na explicação que Durant dá dos sofistas gregos, em parte transcrita acima, é de autoria de Protágoras (485 a.C.-410 a.C.), o maior expoente desse grupo, que incluía também Górgias de Leontini (483 a.C.-376 a.C.). Essa frase pode ser banal e óbvia para nós no século XXI, que ao menos em certos países do Ocidente e em determinados grupos, vivemos de maneira que a religião não tem um peso significativo sobre as práticas sociais, econômicas e culturais. No entanto, falar isso na Grécia do século V a.C. era uma novidade revolucionária.
Para explicar o ineditismo dessa afirmação e suas implicações para a ordem social, é preciso em primeiro lugar entender a relação entre o homem ser a medida de todas as coisas e o desafio à crença em Deus. De acordo com o pensamento sofista, dizer que o homem é o critério básico significa dizer que nós seres humanos só obtemos conhecimento por meio dos nossos sentidos, e não temos como ter acesso ao que é transcendental, isto é, ao que está além da nossa possibilidade de percepção. Partindo dessa premissa, segue-se, de acordo com a lição de Górgias, que se houver algo além dos sentidos ele é incognoscível, e que se existisse algo extrassensorial e fosse cognoscível, o conhecimento sobre ele seria incomunicável, porque não existe comunicação além dos sentidos.
É por isso que a frase “O homem é a medida de todas as coisas”, tem um complemento que é pouco citado, qual seja, o homem é a medida das coisas que são que elas são, e a medida das coisas que não são que elas não são. Os sentidos são o único caminho para o conhecimento e a verdade e tudo o que o homem diz sobre as coisas é a única possibilidade epistemológica. Não há base para fazermos especulações sobre um ser imutável transcendental, fonte da verdade que não pode ser captado pelos sentidos. Daí os sofistas serem contrapostos, aos idealistas, como Parmênides, que queriam ir além das aparências do mundo sensível, da sua inconstância e das suas contradições.
Dessa maneira, o conhecimento e a verdade não são absolutos, porque são construídos por homens que vivem em determinado lugar e tempo e por isso têm as mais diversas experiências sensoriais. Daí ao desafio à noção de Deus é um passo. Como pode o homem pretender falar de maneira categórica sobre um conceito que não pode ser elaborado com base nos sentidos e verificado por meio da experiência? Como falar daquilo que por estar além dos sentidos, é incognoscível e incomunicável? As histórias sobre os Deuses não passam de criações poéticas e ninguém pode afirmar que sejam a verdade. Podem ser até úteis para estabelecer as bases do convívio social, proporcionando uma justificativa das regras morais, mas é uma justificativa que analisada criteriosamente sob os critérios sofistas não se sustenta: os preceitos religiosos não devem ser obedecidos porque são a verdade, já que a verdade é inacessível ao homem, limitado que está pelos seus sentidos, mas porque cumprem um determinado objetivo prático.
A relação entre o relativismo do conhecimento possível ao homem e o desafio à noção de Deus leva assim a uma outra dimensão revolucionária da concepção sofista. Qual seja, a noção de pragmatismo, do qual Protágoras e considerado o pai. Se não há um ser transcendental, mas apenas seres humanos cujos conhecimento é determinado por seu tempo e seu espaço, então os desentendimentos entre os homens não podem ser resolvidos recorrendo-se ao critério da verdade. A opinião de cada indivíduo é a verdade para ele, o máximo que se pode fazer é submetê-la a uma análise para verificar se a argumentação foi desenvolvida de acordo com as regras do bom pensamento estabelecidas pelos sofistas: precisão do uso dos termos, coerência e consistência das proposições, sequência lógica a partir de hipóteses fundamentais, embasamento na experiência: se uma opinião satisfaz tais critérios, ela é tão boa quanto qualquer outra submetida ao mesmo crivo do argumento logicamente válido, independentemente de haver ofensa aos preceitos morais ou religiosos da sociedade. Trasímaco (459 a.C.-400 a.C.), um outro filósofo sofista, chega a definir a justiça como a vantagem do mais forte, já que por definição não pode haver uma concepção unívoca do que é a justiça
Não é de se estranhar que Protágoras tenha sido acusado de ímpio em Atenas, tenha tido seus livros publicamente queimados e depois tenha sido exilado em 415 a.C. A Atenas de Péricles (495 a.C.-429 a.C.) construiu o Parthenon em homenagem aos deuses do Panteão da cidade e uma imensa estátua da Deusa Atena encontrava-se no centro do templo. Os mitos religiosos contavam a história da fundação da Hélade e por isso forneciam uma explicação e um senso de propósito à civilização grega. Neste ponto a avaliação equilibrada das pontos fortes e dos pontos fracos das ideias dos sofistas realizada por Durant mostra os perigos que estavam por trás dessa ideia de tornar o homem o último critério.
De fato, conforme o trecho citado na abertura deste artigo, se por um lado os sofistas proporcionaram, por meio de seus cursos, as ferramentas para os gregos pensarem e defenderem suas opiniões em pé de igualdade na assembleia dos cidadãos, contribuindo para a efervescência da democracia em Atenas, por outro o pragmatismo embutido no ideário sofista solapou as bases da sociedade. Se o critério para escolher uma opinião em detrimento de outra é sua utilidade, em última análise não há critério sólido nenhum, pois as seguintes perguntas ficarão sempre sem uma resposta definitiva: útil para quem? útil quando? E em não havendo um critério no qual as pessoas poderiam crer de maneira absoluta, corre-se o risco de a força imperar como fator de escolha sobre que rumo seguir.
Para Durant, o legado negativo dos sofistas não pode ser disfarçado: se os costumes, a sabedoria e o bom senso seculares, frutos das tradições do povo fundadas nos mitos religiosos, são relativizados e colocados na vala comum de uma dentre tantas alternativas possíveis, então o homem, livre das amarras dos pré-conceitos, coloca-se no centro do mundo, senhor da sua própria opinião e do seu próprio destino, e por isso não se curva à autoridade, não se sacrifica pelo bem comum: os valores morais e éticos embasados na teogonia se desmancham no ar, não passando de histórias contadas para o exercício do poder, e podem ser substituídos por outros mitos fundadores propostos por líderes políticos que saibam argumentar de maneira convincente em prol de uma linha alternativa de ação ou mesmo que a imponham à força das armas.
Prezados leitores, a descrição do pensamento fundado na premissa de que O homem é a medida de todas as coisas permite a Durant explorar os desafios de qualquer regime democrático: como conciliar a liberdade de pensamento da democracia com a ordem social? Será possível fundar as regras de convívio em sociedade em critérios puramente pragmáticos? Ou qualquer sistema que pretenda ser duradouro precisa de mitos religiosos que tenham poder de coerção suficiente sobre a mente das pessoas para que elas ajam de maneira ética? Será que a democracia é um regime inerentemente instável devido à multiplicação de opiniões e opções igualmente válidas? Em suma, a máxima do homem como a medida das coisas abre uma caixa de Pandora e cada sociedade ao longo da História que escolheu abri-la no final das contas enfrenta a questão de equilibrar-se entre a ordem e o caos.