Eu acredito que o remorso é o menos ativo de todos os sentidos morais do homem – o que mais facilmente pode ser morto quando despertado; e em algumas pessoas nunca é despertado. Nós lamentamos sermos descobertos e a ideia da vergonha ou da punição, mas o mero senso de transgressão faz muito poucas pessoas infelizes na Feira das Vaidades.
Trecho retirado do livro “Fogueira das Vaidades” de William Tackeray (1811-1863), jornalista e escritor nascido em Calcutá, Índia e radicado na Inglaterra
Se ele não fosse um grande príncipe, possivelmente muito poucos o teriam visitado, mas na Fogueira das Vaidades os pecados de grandes personagens são vistos com um olhar indulgente.
Trecho retirado do livro “Fogueira das Vaidades” de William Tackeray (1811-1863), jornalista e escritor nascido em Calcutá, Índia e radicado na Inglaterra
Vocês gostam é do bem duro, né? Ninguém é de ferro
Trecho de vídeo em que o médico e influenciador digital brasileiro Victor Sorrentino faz brincadeira com uma vendedora em Luxor, no Egito, comparando o papiro duro e comprido vendido na loja ao órgão sexual masculino
Eu estou gravando este vídeo para pedir desculpas […] Para deixar claro que tenho o maior respeito pelo povo egípcio em geral, especialmente as mulheres egípcias
Trecho de vídeo gravado pelo médico ao lado da vendedora que foi objeto da sua brincadeira depois de passar alguns dias na prisão no Egito, acusado de assédio sexual
Prezados leitores, na semana passada eu usei um trecho de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, para exemplificar o comportamento dos membros das nossas elites em relação aos negros. O objetivo era mostrar como os grandes escritores em seus exercícios de imaginação revelam a essência da realidade. Inspirada pela leitura do bruxo do Cosme Velho, eu fiz uma previsão errada: acreditei que Eduardo Pazuello, aquele que fez um soldado negro puxar uma carroça em 2005 e em 2021 participou de um ato político ao lado de Jair Bolsonaro em sendo general da ativa, seria de alguma forma punido, mesmo que fosse punição de fachada.
Nem isso ocorreu: ao contrário de Brás Cubas que era repreendido pelo pai na frente de todos quando era cruel, sádico ou traquinas, e às escondidas recebia a admiração do pai por sua demonstração de energia, Pazuello foi oficial e escancaradamente perdoado em 2021 como havia sido perdoado em 2005, porque suas explicações foram aceitas de maneira benevolente pelo Exército tanto no passado como agora. Daí que nesta semana, procuro um outro escritor que explique para mim esses desdobramentos, porque talvez Machado de Assis não dê conta de todas as nuances da realidade brasileira do século XXI. E o escritor por mim escolhido é William Thackeray, que chegou a ser considerado pelos críticos melhor que Charles Dickens. Eu o escolho por causa de sua obra Vanity Fair, que ele publicou em capítulos entre 1847 e 1848 e o alçou à fama. Como mostram os trechos citados na abertura deste artigo, Tackeray usa Vanity Fair como uma expressão para referir-se à sociedade do seu tempo, seus usos e costumes, de maneira irônica e reveladora. À época em que se passa a história, no chamado período da Regência no Reino Unido, de 1795 a 1837, as relações sociais eram estabelecidas fisicamente em jantares, festas, passeios de carruagem no parque.
Atualmente a Vanity Fair desenrola-se virtualmente nas mídias sociais: é lá que as pessoas se encontram, conversam, trocam elogios e insultos. Por isso, para adaptar as observações de Tackeray à nossa realidade do século XXI, é preciso voltar os olhos para o que se passa lá. Nesta semana que passou o incidente envolvendo o médico Victor Sorrentino, brasileiro que estava em férias no Egito e que tem mais de um milhão de seguidores, pode ser entendido aplicando o conceito de que somos seres sociais, participantes desta Feira das Vaidades e que estamos sempre desempenhando um papel.
Para um médico as mídias sociais são um bom canal de divulgação: eles podem postar conteúdos sobre saúde e caso sejam seguidos recebem um dinheiro de acordo com o número de curtidas que recebem. E para manter a atenção dos seguidores é preciso postar novidades o tempo todo. Nada mais natural que estando num país exótico como o Egito das pirâmides, Victor Sorrentino procurasse explorar a oportunidade. Afinal, exagerar no conteúdo técnico sobre medicina pode cansar a mente dos internautas cuja capacidade de atenção é cada vez menor. É preciso variar. Por que não um vídeo em que o médico grava uma pegadinha com uma incauta vendedora que não fala nada de português – e portanto não entenderia as piadas – e deixaria que a historinha se desenrolasse de maneira autêntica?
Assim o Sr. Sorrentino fez, com a ajuda de um amigo. Enquanto a vendedora, de lenço nos cabelos como boa muçulmana, fazia a demonstração do produto vendido, o papiro, Victor e seu colega de gravação comparavam o comprimento e a dureza do dito cujo com a preferência das mulheres por determinado tipo de órgão sexual masculino. Tudo muito engraçado, especialmente porque a vendedora desempenhava o seu papel de fazer a demonstração das qualidades do papiro sem saber que também demonstrava as qualidades que toda mulher, de acordo com os ensinamentos do médico brasileiro, procuram no homem.
O que o doutor não podia prever é que haveria brasileiros que moram no Egito e que traduziram a pegadinha do papiro-pênis ou do pênis-papiro para o árabe, o que permitiu que as autoridades egípcias ficassem sabendo e enquadrassem a conduta de Victor como assédio sexual, o que o levou à prisão, já que ele mesmo fez prova contra si. Depois de alguns dias, o médico gaúcho foi solto, provavelmente depois de pagar uma bela propina, considerando que o Egito está na posição 117 de 180 países relacionados no Índice de Corrupção da Transparency International, com 33 pontos, ao passo que o Brasil está na posição 94, com 38 pontos. E mais, ele seguiu o ritual da Vanity Fair do século e pediu desculpas às mulheres egípcias, a quem ele respeita muito.
Aqui a sabedoria de Tackeray vem a calhar, conforme mostrada na abertura deste artigo. Será que a retratação e a gravação do vídeo fazem parte do acordo com as autoridades egípcias para ele ser solto ou ele realmente arrepende-se do que fez? E se ele se arrepende, será que é porque foi pego em flagrante delito e passou um medo danado em uma prisão egípcia? Ou será que esse respeito que ele afirma ter pelas mulheres faz apenas parte do ritual a ser cumprido para ele não ser defenestrado das redes sociais e perder sua fonte de receitas? O mínimo que se pode dizer sobre seu comportamento é que ele não tem sensibilidade nenhuma em relação às diferenças culturais e de costumes de países muçulmanos, ou talvez seja totalmente ignorante sobre o que significa ser uma mulher em um país muçulmano e sobre o que uma mulher muçulmana almeja na vida, o que é muito diferente do que uma mulher sexualmente liberada e empoderada do Ocidente almeja.
No final das contas, o episódio pode ter sido vantajoso para Sorrentino para aumentar seu público de seguidores. Teve sorte de ter feito uma pegadinha no Egito, um país em que o turismo reponde por 11% do PIB e que emprega 12% da força de trabalho do país. Talvez se ele tivesse gravado esse vídeo em países do Golfo Pérsico, como Arábia Saudita ou Emirados Árabes que nadam de braçada em petrodólares, a pena teria sido mais severa. Para voltar a ser membro atuante na Vanity Fair do século XXI bastou ao médico desempenhar em frente às câmeras o papel de homem contrito respeitador do povo egípcio e de suas mulheres. E como ensinou Tackeray há mais de 170 anos, perdoa-se mais facilmente a um indivíduo poderoso como ele, com um milhão de seguidores, assim como perdoou-se ao grande Pazuello os pecadilhos de humilhar um soldado negro e de servir de cabo eleitoral de Bolsonaro na qualidade de membro da ativa do Exército.
Prezados leitores, tanto o general quanto o doutor continuarão a desfilar pela Feira das Vaidades, cada qual ao seu modo: Pazuello mostrando sua reconhecida competência em gestão e logística que demonstrou quando esteve à frente do Ministério da Saúde, Sorrentino sua reconhecida competência nos meandros da sexualidade feminina. Sejamos indulgentes com a fina flor das nossas elites porque elas têm muitos produtos a mostrar na Vanity Fair.