Ao apuramento do saldo importa pouco que tenham morrido aos milhões por inundação natural, revolvimento de enxada ou desafio de micções: quem viveu, comeu, quem morreu deixou aos outros. A natureza não conta mortos, conta vivos, e, quando estes lhe sobejam, arranja uma nova mortandade.
Trecho retirado do livro Levantando do Chão, do escritor português José Saramago (1922-2010)
Para o homem aqueu, a vida humana vale pouco; tirá-la não é grave; um momento de prazer pode substituí-la. Quando uma cidade é capturada os homens são mortos ou vendidos como escravos; as mulheres tornam-se concubinas se são atraentes, ou escravas se não são. […] Ele mora em um mundo em desordem, assediado, faminto, onde cada homem tem que ser seu próprio policial, de prontidão com uma flecha e uma lança e com a capacidade de olhar de maneira calma para o sangue que escorre. “Uma barriga vazia,” como explica Ulisses, “nenhum homem pode esconder… Por causa dela os navios são feitos que levam o mal aos inimigos no mar revolto.”
Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano
Prezados leitores, a vida da Grécia Antiga, tal como contada por Will Durant, passa por várias etapas em que a história se mistura aos mitos. Na semana passada, mencionei a figura mítica do Minotauro, ligada à civilização minoica que se desenvolveu em Creta. Nesta semana, cabe menção aos aqueus, que Durant define como os gregos da Idade Heroica, isto é, os gregos que lutaram contra os troianos e cuja epopeia foi narrada na Ilíada de Homero. Graças às escavações de Heinrich Schliemann (1822-1890) no que hoje é a região da Anatolia, na Turquia, sabe-se que Troia realmente existiu. Nesse sentido, considera-se que os acontecimentos e os personagens da Ilíada – Aquiles, Menelau, Príamo, Helena, Agamenon dentre outros – têm um fundo de verdade histórica recontada ao longo dos séculos pelos gregos para criarem sua própria narrativa e assim consolidar seus próprios valores.
A Guerra de Troia, para além da versão homérica de que foi desencadeada pelo rapto de Helena, é a disputa pelo Helesponto, que atualmente tem o nome de estreito de Dardanelos e cuja localização era estratégica, pois dava acesso às terras do Mar Negro. E eram de terras que os gregos precisavam, premidos pelo excesso populacional, pela fome, pela inconstância da produção agrícola. Pobres homens que ainda não viviam sob o signo da tecnologia como nós, que dela podemos depender para que a Natureza não nos pegue de surpresa com secas, inundações, terremotos, epidemias.
E o que fazer nessas terras? No longo prazo colonizá-las, no curto prazo certamente saqueá-las, aproveitar a riqueza já produzida por aqueles que estavam lá antes e que foram subjugados na conquista. Aos perdedores, cabe a morte, a escravidão, e na melhor das sortes para as mulheres bonitas, tornar-se parte de um harém.
Nessa luta pelo pão de cada dia, vale tudo. Ao comentar em linhas gerais os episódios narrados nos 24 capítulos da Ilíada, Durant realça o que era considerado pecado e virtude neste mundo hostil: ser gentil, perdoar ofensas, ser fiel, trabalhador e honesto é contraproducente, pois a possibilidade constante de guerras pela disputa de territórios faz com que aquilo que ajuda o homem a prosperar em tempos de paz certamente lhe será fatal no momento de uma invasão por um povo inimigo. Por isso é preciso saber lutar, mentir, matar, trair, tudo para garantir sua sobrevivência e da sua família. A Ilíada tem versos cuja beleza foi uma das matrizes da literatura ocidental (aliás, a título de curiosidade, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, recita-os em grego no original, confiram no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=VzJQ0TcBmqU), mas ela não deixa de ser uma obra que faz do terror algo bonito: o terror da opressão pela força, do destino infeliz, da humilhação infligida pelos vencedores, dos caprichos insondáveis da Natureza.
E assim, os gregos, ouvindo a bela poesia da Ilíada, forjaram seus mitos e seu modo de ser, levando-os a lançarem-se na exploração do Mediterrâneo e a fundarem cidades ao longo da costa que se transformaram na Magna Grécia. Quando estive no Museu do Parthenon, em Antenas, o que saltou aos meus olhos foi a estética da guerra: como aqueles homens e seus cavalos, no calor da refrega, são belos porque são fortes, porque lutam e porque o fazem com orgulho e com dignidade, altaneiros. A narrativa da vida como luta incessante em um mundo hostil impulsionou o povo grego em seu brilhante percurso histórico, em que a necessidade de conquista misturou-se à curiosidade pelo novo e lhes permitiu lançar as bases da civilização ocidental. Afinal, como aponta Durant, em nossa época “grandes nações conquistam e subjugam povos indefesos sem perder a dignidade ou a retidão moral”. Em suma, o Império Romano, o Império Napoleônico, o Império Britânico, o Império Americano, têm todos como origem espiritual a narrativa homérica da Guerra de Troia.
Se a concepção da natureza hostil foi fonte de inspiração para os gregos lutarem e vencerem, ela adquire uma conotação totalmente diferente na obra de José Saramago, escritor já citado neste meu humilde espaço inúmeras vezes. Em Levantado do Chão, obra em que ele conta a saga de uma família de lavradores portugueses, os Mau-Tempo, no início do século XX, tal concepção não é fonte de transcendência, de sublimação: a natureza indiferente ao destino dos indivíduos, tal como retratada no trecho citado acima, serve para que Saramago narre a antiepopeia. Os desafios do mundo não fazem o homem superar-se, heroificar-se, ao contrário: torna-o preso às condições materiais adversas, preso num círculo vicioso de exploração pelos poderosos em que não se pode contar com proteção nenhuma: Deus não ajuda os pobres porque a religião acoberta a vileza dos ricos permitindo que eles permaneçam impunes, e a Natureza, quando resolve manifestar-se, trucida os pobres como moscas, vulneráveis que estão pela fome e pela ignorância. Uma visão pessimista, certamente, mas que não deixa de ser bela, pois revela uma verdade fundamental da vida a respeito de como o sistema econômico transforma o homem em besta de carga dócil e dispensável, pois que pode ser substituída facilmente. Independentemente das convicções marxistas ou comunistas de Saramago, não há como negar-lhe a capacidade que ele tem de nos mostrar como os pobres se encaixam no esquema geral das coisas, tornando-se invisíveis aos olhos dos privilegiados: sem alma, sem sentimentos, reduzidos a sua utilidade ou não para o trabalho.
Prezados leitores, a perspectiva histórica sempre nos permite lançar luz sobre nossos próprios problemas contemporâneos. As guerras contínuas nos primórdios da civilização grega e a exploração agrícola baseada no latifúndio que ainda vigorava no Portugal do começo do século XX mostram que a luta do homem, gloriosa ou inglória, continua mais viva do que nunca. Nós, que há dois anos achávamos que o mundo era cheio de oportunidades de consumo, de viagens, de trabalho, vimo-nos sermos vítimas de uma peça pregada pela Natureza, que fez surgir de repente uma peste até agora incurável, uma legião de miseráveis que perambulam pelas ruas procurando no lixo restos de comida e uma grande insegurança em relação ao futuro. O que faremos? Consideraremos tudo isso um desafio que nos levará a olhar para o céu ou um fado que nos levará a olhar para o chão?