Tome cuidado, Pávlucha, estude, não seja bobo e nada de travessuras, acima de tudo seja bom com os professores e com os superiores. Se agradar a um superior, ainda que você não tire boas notas nas matérias e que Deus não tenha lhe dado talento, tudo vai andar nos trilhos, e você vai passar na frente de todos. Não fique muito ligado a seus colegas, eles não vão lhe ensinar nada de bom; mas se isso tiver de acontecer, ande com os mais ricos, para o caso de poderem ser úteis a você. Não convide nem ofereça nada para ninguém comer ou beber, é melhor que os outros ofereçam a você, e, acima de tudo, guarde e acumule copeques: é a coisa mais confiável que existe no mundo. Um colega ou amigo vai enganar você, e quando você estiver em apuros ele será o primeiro a denunciá-lo, já que o copeque nunca vai denunciar você, por maior que seja seu apuro. Com o copeque, tudo no mundo se arranja e tudo se consegue.
Trecho retirado do livro “Almas Mortas”, de Nikolai Gógol (1809-1852)
A primeira coisa que eu sugeriria a você é que você deve ser grato a Deus, e lembrar sempre que não é por causa dos seus méritos, da sua prudência ou da sua solicitude que este acontecimento ocorreu, mas por meio do favor DELE, o qual você só pode retribuir levando uma vida piedosa, casta e exemplar. Em eventos públicos deixe que sua carruagem e suas vestimentas fiquem abaixo da mediocridade e não acima dela. […] Uma bela residência e uma família bem ordenada serão preferíveis a um grande séquito e a uma residência esplêndida. […] Seu gosto será mais bem mostrado na aquisição de algumas poucas antiguidades elegantes, ou na coleção de belos livros e pelo fato de seus serviçais serem instruídos e bem educados em vez de serem numerosos. Convide pessoas a sua casa de maneira mais frequente do que aceite convites e não exagere nem num nem noutro.
Trecho retirado da carta que Lourenço, o Magnífico (1449-1492) escreveu em 12 de março de 1492 para seu filho Giovanni de Medici (1475-1521), o futuro papa Leão X, quando o adolescente de 16 anos parte para Roma para juntar-se ao Colégio dos Cardeais
Prezados leitores, em um momento em que recebemos cada vez mais conselhos das nossas autoridades e cada vez menos as obedecemos, nesta semana eu saí à procura de exemplos de conselhos dados por outras pessoas em outros tempos e o efeito que tiveram nos aconselhados.
Para isso, valho-me uma vez mais de Tchítchikov, o herói criado por Nikolai Gógol, que em um certo momento do livro revela que o especulador de São Petersburgo que dá um golpe em vários nobres em uma província distante é um rematado canalha. E para provar seu ponto, o autor narra as origens de Tchítchikov, começando por sua infância. O trecho que abre este humilde artigo é o sermão que o pai do herói-canalha dá ao filho quando o manda a uma outra cidade estudar. É um roteiro perfeito para um moço pobre e medíocre intelectualmente navegar em um mundo hobbesiano, em que o homem é o lobo do próprio homem.
O pai de Tchítchikov não recomenda esperar muito de Deus. Pode ser que ESTE não tenha lá muita simpatia pelo ainda menino e não o agracie com alguma qualidade que o faça sobressair pelos méritos. O mais prudente é preparar-se para o pior cenário, em que Tchítchikov não saia nem bonito, nem espirituoso, nem espiritual, nem perspicaz, nem sábio, nem criativo nem nada. Assim, a melhor qualidade é funcionar de maneira implacável no modo sobrevivência, cuidando sempre dos seus próprios interesses e protegendo-se. Para isso, dois elementos são fundamentais, o dinheiro e o poder. Um garoto pobre e que não herdará nada de relevante, como é o caso do Tchítchikov criança, só consegue um e outro engraçando-se com as pessoas que os têm de sobra, os ricos e as autoridades.
Para conseguir o favor das autoridades é preciso sempre obedecê-las em tudo e por tudo, fazer-lhes homenagens e ser afável com elas. A primeira autoridade em relação à qual Tchítchikov aplica o sermão do pai é o professor do colégio, que o menino estuda atentamente para saber como agradá-lo. E Tchítchikov faz isso tão bem que é sempre o melhor aluno e forma-se com louvor, não porque soubesse escrever ou argumentar melhor, mas simplesmente porque sabe colocar-se à sombra do professor, reforçando sua autoridade sobre os alunos que por seus méritos intelectuais autênticos irritavam a mediocridade do instrutor. Quanto a conseguir o favor dos ricos, é preciso estar perto deles e fazer-lhes favores quando eles precisam de modo que paguem pela graça recebida de um garoto mais pobre do que eles, mas sempre solícito e camarada.
Ficando perto dos ricos e das autoridades, sem nunca confiar neles e sempre esperando conseguir algo em troca, Tchítchikov atinge o bem supremo estabelecido pelo credo de seu pai, isto é a autossuficiência, a capacidade de cuidar de si sozinho, de não depender de ninguém, mas apenas do dinheiro, que sempre protege e ampara. Nada de compartilhar, de trocar experiências, emoções, pensamentos: Tchítchikov estabelece relações sociais não para aprimorar-se espiritual ou intelectualmente, mas para objetificar as pessoas, tornando-as instrumento para ele acumular mais dinheiro e mais poder. Seguindo à risca os conselhos do pai, o herói-canalha sai da pobreza da província e transforma-se em um sofisticado especulador na reluzente capital da Rússia.
Não é difícil perceber que o modo caricatural com que Gógol pinta Tchítchikov, a começar pelo sermão de uma crueza perturbadora dado pelo pai, é uma crítica à autocracia tzarista e dá um novo sentido ao título do livro, Almas Mortas. Em um regime em que são bem-sucedidos os sicofantas, os bajuladores, os estelionatários, os especuladores, não há espaço para o cultivo das qualidades da mente e do espirito, que acabam morrendo por falta de cultivo. O fundamental é não desagradar a autoridade, porque dela e somente dela emanam as coisas boas da vida: a proteção, a segurança, o conforto.
Que diferença em relação aos conselhos dados por Lourenço, o Magnífico! Não estamos no mundo do arbítrio, dos caprichos dos poderosos, a começar por aquele que tem o poder supremo, Deus. O Deus a que Lourenço faz referência não é o Deus tirânico do pai de Tchítchikov que pode ou não agraciar o ser humano com algum talento, a depender da sua vontade. É um Deus que conferiu muitos favores a Giovanni, fazendo-o nascer em uma família podre de rica e tornando-o cardeal da Igreja Católica Apostólica Romana na tenra idade de 16 anos. Nessas circunstâncias, o sermão de Lourenço é exatamente o oposto da luta implacável pela sobrevivência: Giovanni não precisa ganhar o pão de cada dia, pois seu sustento material está garantido até o seu último suspiro. Cabe ao adolescente-cardeal ou cardeal-adolescente mostrar a Deus sua gratidão imensa por tais privilégios levando uma vida virtuosa e comedida. Giovanni de Medici não é um sanguessuga da elite como Tchítchikov, ele é a própria personificação da elite e a casta superior deve buscar sempre altos padrões de excelência, mostrando-se digna de permanecer no topo: não deve esfregar sua riqueza na cara dos menos privilegiados, deve cultivar o belo para ser imitado por todos, deve dar mais do que receber, pois a magnanimidade ofusca a mesquinhez e a cobiça dos arrivistas e dos pilantras que querem tomar o lugar dos melhores.
Cabe a pergunta: será que os conselhos de Lourenço ao filho surtiram efeito como os do pai de Tchítchikov? Giovanni torna-se Leão X em 1513 e será um grande patrocinador das artes plásticas, da literatura, dos estudos acadêmicos. Em 1515 toma uma decisão importantíssima que talvez seja o seu maior legado: nomeia o grande pintor Rafael (1483-1520), que trabalhava para ele no Vaticano, como supervisor de antiguidades, com a missão de preservar o legado arquitetônico e artístico de Roma, que depois de séculos de dilapidações, tornara-se uma sombra daquilo que fora na época imperial. Em suma, Leão X, à sua maneira, retribuiu a graça do privilégio que Deus lhe havia concedido, contribuindo pelo seu patrocínio à cultura e à civilização ocidentais.
Prezados leitores, que conselhos dar a um filho no século XXI? Ser interesseiro e egoísta como Tchítchikov porque este é o único modo para uma pessoa sobreviver se não tiver nenhuma qualidade especial, ou ser generoso e cultivar o belo e o melhor como Leão X, que nasceu e morreu em berço de ouro? Difícil resposta. Só uma coisa é certa: o caminho seguido por um e por outro depende do tipo de autoridade que lhes dá conselhos. Oxalá que ao longo deste nosso tempo de incertezas surjam conselheiros mais à moda italiana renascentista do século XV do que à moda russa autocrata do século XIX.