Uma vez desembarcados no território brasileiro, os cativos africanos funcionavam como reguladores das trocas internas. Normalmente vendidos a crédito, obrigavam o comprador por prazos longos com o vendedor – vinculando os fazendeiros ao comerciante da cidade que lhes fornecia escravos. […] Essa longa cadeia fazia com que, na economia brasileira, os traficantes de escravos fossem, de longe e desde sempre, os empresários mais bem-sucedidos.
Trecho sobre o negócio do tráfico africano no Brasil retirado do livro História da Riqueza no Brasil, de Jorge Caldeira
Os libertos não ganharam um único tostão com a alforria, já que os senhores se tornaram mais pobres, porque tiveram cancelados os títulos de propriedade sobre os escravos, perdendo o valor total que esses títulos tinham até a véspera. […] Todavia, sem os títulos de propriedade de escravos, não conseguiam empréstimos para pagar salários – as leis a favor dos proprietários tornavam impossível cobrar empréstimos sobre fazendas, de modo que não conseguiam crédito nem mesmo oferecendo toda a propriedade como garantia.
Trecho sobre as consequências econômicas da abolição da escravidão no Brasil em 1888 retirado do livro História da Riqueza no Brasil, de Jorge Caldeira
A capital era o destino da maior parte da poupança nacional, em decorrência das ações do governo para captar impostos e emitir títulos de dívida.
Trecho retirado do livro História da Riqueza no Brasil, de Jorge Caldeira
Prezados leitores, cada historiador adota uma chave para o entendimento do objeto da sua análise. Há os que preferem enfocar os líderes políticos e econômicos, considerando que eles moldam uma era pelas suas ações inovadoras que quebram paradigmas estabelecidos; há os que preferem enfatizar as estruturas econômicas, em uma visão materialista herdada do marxismo de que a superestrutura é determinada pela infraestrutura, isto é, a cultura, a política, as mentalidades, as relações sociais são determinadas pela maneira como as pessoas se organizam para produzir e trocar produtos e serviços; há aqueles para os quais a estrutura mental dos grupos sociais, seus símbolos, a maneira como enxergam o mundo determinam o modo como agem na realidade. Jorge Caldeira tem como foco entender como a sociedade brasileira organizou-se para sobreviver e tentar progredir materialmente desde a época colonial até nossos dias. Para isso ele faz uso de conhecimentos tirados de várias disciplinas como a antropologia, a sociologia, a política, a econometria. Nesse sentido, poderíamos considerá-lo como adepto dos preceitos da economia institucionalista. Explico-me com base em um conceito que ele utiliza em seu livro, o do fiado, como a “única instituição relevante na economia” que permite a Caldeira descrever o modo como produzia-se riqueza no Brasil até o fim do período monárquico.
Todas as trocas de produtos em nosso país eram baseadas na palavra empenhada pelo comprador e pelo vendedor, sem que houvesse a intermediação de moeda, ao menos em um primeiro momento. Esse tipo de relação econômica remontava aos primeiros anos da colonização da Terra Brasilis, quando os portugueses tiveram contato com as tribos indígenas que viviam na costa: os tupinambás davam produtos da terra como o pau-brasil, que eram comercializados na Europa e até mulheres, em troca de armas com as quais os índios podiam lutar contra as tribos inimigas. O escambo assim, tinha um propósito tanto econômico, de obter gêneros que atendiam as necessidades materiais dos índios e dos europeus, quanto político, de forjar alianças militares pelo casamento. João Ramalho (1493-1580), o pai dos paulistas, foi um típico participante bem-sucedido desse tipo de troca: fundador de Santo André da Borda do Campo, onde hoje é São Bernardo do Campo, casou-se com Bartira, filha do cacique Tibiriçá, e tornou-se o principal líder das tribos dos índios tupiniquins em São Paulo, mas na prática vivia como um polígamo, graças às constantes transações com os nativos.
Como mostra o primeiro trecho que abre este artigo, essa atividade permaneceu praticamente inalterada até o final do período monárquico: os traficantes traziam escravos da Europa e os vendiam aos fazendeiros que não pagavam à vista, mas prometiam pagar ao longo do tempo. Não havia no Brasil uma proteção institucional do crédito: quando o fazendeiro precisava de dinheiro, ele recorria a um banco, mas a única garantia de que o banco poderia dispor eram os títulos de propriedade dos escravos, pois o parco direito comercial em vigor na época não permitia que no caso de inadimplemento o credor tomasse a propriedade do fazendeiro. Então quem oferecesse crédito o faria em uma estrutura em que não havia meios jurídicos de executar a dívida e os dois instrumentos ao dispor de credores e devedores eram a confiança advinda de relações de longo prazo e a posse de escravos.
Essa falta de leis que viabilizassem a cobrança de créditos compreendia outros aspectos, como a possibilidade de arrolar no inventário de um devedor bens que pertenciam à sua empresa, a não obrigatoriedade de registros contábeis separados da empresa e do indivíduo, a inexistência de fronteiras claras entre o patrimônio de um e de outro. O resultado era que só grandes fazendeiros e traficantes que podiam oferecer seus escravos com fiança tinham acesso ao crédito e sem crédito ficava difícil investir na produção de mercadorias e gerar riquezas.
Somava-se a esse regime jurídico insuficiente a crônica penúria do governo imperial, que esteve sempre endividado desde nosso nascimento como país, quando D. Pedro I tomou um empréstimo na Inglaterra para indenizar Portugal pela nossa independência e também para de maneira secreta financiar o exército que ele organizou para tomar o poder das mãos de seu irmão mais novo em Portugal, Dom Miguel, e colocar no trono daquele país sua filha mais velha, Dona Maria da Glória. O eterno déficit público fazia com que o governo procurasse controlar o câmbio e diminuir a circulação monetária para não desvalorizar a moeda nacional e assim viabilizar o pagamento de dívida cotada em libras esterlinas. Necessitando sempre de recursos, o poder central sediado no Rio de Janeiro captava a poupança nacional por meio do aperto fiscal representado pelos impostos, especialmente sobre as importações, e pela apreciação da moeda.
Assim, as trocas econômicas sem garantias reais, a penúria de crédito, a pouca oferta de moeda, tudo conspirava contra o desenvolvimento capitalista no Brasil, criando um quadro institucional de austeridade constante que inviabilizava os investimentos em empresas. Sob essa perspectiva, o fiado era o símbolo dessa produção de riqueza que, por não ter apoio de leis de proteção ao crédito, era medíocre e impedia que os produtores alçassem voos mais altos.
Daí por que Jorge Caldeira tem um juízo negativo sobre o período monárquico, que falhou em não criar a infraestrutura necessária para dar o salto de qualidade do escambo mercantilista para a produção em massa do capitalismo industrial que então florescia nos Estados Unidos. Não é de estranhar que a Monarquia tenha caído um ano e meio depois da abolição da escravidão: os fazendeiros que não receberam apoio financeiro do governo para fazer a transição do trabalho escravo para o assalariado ficaram sem meio, de obter capital por não poderem oferecer garantias de empréstimos, e muitos foram à falência. Não havia porque apoiar um governo que lhes tinha deixado na mão, em nome do equilíbrio das contas públicas.
Prezados leitores, as análises contidas em História da Riqueza do Brasil permitem-nos traçar vários paralelos com a situação atual do país. Tanto no século XIX como no século XXI as instituições brasileiras deixam a desejar na tarefa de apoiar a geração de riquezas no Brasil. O fiado foi superado, mas o endividamento público, o aperto fiscal, a falta de recursos para investimentos produtivos continuam, fazendo-nos chafurdar em um círculo vicioso de desemprego, baixo crescimento econômico e estagnação ou piora da qualidade de vida. A República de 1889 foi a saída encontrada àquela época. Qual poderá ser o truque agora?