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Arquétipos, lá e aqui

Posted by on 03/02/2021

Em todas as coisas procurava-se pela “moralidade” como dizia o homem medieval, ou seja, a lição que dali se extraía, o significado moral mais essencial. Cada caso histórico ou literário tende a se cristalizar numa parábola, num exemplo moral, numa evidência; cada declaração, numa sentença, num texto, num dito. Assim como nas conexões simbólicas sagradas entre o Novo e o Velho Testamento, as conexões morais fazem com que cada incidente da vida possa imediatamente ser refletido num modelo, num arquétipo das Escrituras, da história ou da literatura. […] Num lugar em que para cada caso se encontra tão facilmente uma explicação, e, uma vez que esta foi aceita, se acredita nela com tanto fervor, reina uma extraordinária comodidade do falso juízo.

Trecho extraído do livro “O Outono da Idade Média” do historiador holandês Johan Huizinga (1872-1942)

   Prezados leitores, o trecho que abre este humilde artigo foi retirado do 17º capítulo do livro, intitulado “As formas do pensamento na vida prática”, em que Johan Huizinga explica como o homem medieval pensava centrando sua argumentação em torno de dois conceitos fundamentais, a casuística e o formalismo. Cada caso isolado da vida real, que suscitava uma pergunta a ser respondida com uma solução, era relacionado com as verdades eternas obtidas a partir da Bíblia ou de textos literários ou da narrativa histórica tal como se encontrava cristalizada.

    Uma vez estabelecida a conexão entre o caso e a verdade, estabelecia-se a solução ideal e o que era isolado passava a ser considerado como uma entidade delimitada por limites fixos que se encaixava na organização hierárquica das coisas. Essa solução transmuta-se então em regras formais rígidas, criadoras de formas dominantes, que servirão por sua vez para encaixar outros atos, os quais serão considerados com tendo características imutáveis independentemente das circunstâncias e da intenção dos agentes. Cria-se dessa forma a casuística, um rol de casos-modelo, que servirão de antecedentes para a abordagem de caso novos, pela aplicação automática das regras obtidas.

    As parábolas, os exemplos morais, os sermões, os juramentos são manifestações da aplicação simultânea desses dois conceitos, pois todos implicam a redução dos incidentes da vida a formas pré-definidas. As nuances, as peculiaridades da realidade concreta são deixadas de lado para enfatizar a reprodução eterna dos esquemas imutáveis. Esse formalismo tem consequências interessantes. Um indivíduo que cometesse um lapso ao prestar um juramento era punido pela falha em pronunciar as palavras sagrada, ao passo que um ato tentado, mas não consumado, mesmo no caso de um delito grave, não era punido. A forma era mais importante que o conteúdo, a repetição eterna das verdades consolidadas mais importante do que a investigação da realidade em si mesma, com toda sua complexidade, suas zonas obscuras, suas ambiguidades morais.

    Para Huizinga, esse formalismo geral do pensamento do homem medieval era responsável pelo caráter oco e superficial da mentalidade da época.

 

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