Para ele, os conceitos de Idade Média e Renascimento são formas vazias. Ele sabe muito bem que o problema não reside nessa divisão abstrata do tempo. Quando atingimos as camadas profundas da história, o que vemos são continuidades. Algumas correntes prosseguem se exacerbando, enquanto outras se tornam debilitadas. Outras nascem lentamente, e mal se veem suas fontes. Nesse nível de profundidade, a periodização é impossível.
Trecho da entrevista dada pelo historiador francês Jacques Le Goff (1924-2014) a Claude Mettera sobre o livro de Johan Huizinga (1872-1945), “O Outono da Idade Média”
[…] o termo “renascimento” é apropriado para o campo artístico e literário, o que chamamos de Renascimento com um “R” maiúsculo, só se aplica a esse campo das artes, renovando ainda mais grandiosamente aquilo que no coração da Idade Média havia sido o renascimento carolíngio e o renascimento do século XII. […] A revolução inglesa do século XVII é só uma última peripécia medieval, e será preciso esperar pelo século XVIII, com a Enciclopédia, o desenvolvimento a partir da Inglaterra das ciências e da indústria, o nascimento do capitalismo sublinhado por Adam Smith, e finalmente a convulsão política fundamental da Revolução Francesa, para que finde a longa Idade Média, que restringi aqui, para não chocar os hábitos sobreviventes que limitam essa denominação ao período inconteste dos séculos IV-XV.
Trecho do livro “Homens e mulheres da Idade Média” organizado pelo historiador francês Jacques Le Goff (1924-2014)
Prezados leitores, os trechos de livros que abrem este humilde artigo ilustram uma determinada concepção de História tanto de Huizinga quando de Le Goff, os quais enfatizam os padrões de cultura vigentes, as condições espirituais de uma época. Adotando essa premissa, para eles o Renascimento foi a adoção de uma nova forma, a forma redescoberta da Antiguidade clássica, mas tal forma foi adaptada a um conteúdo cristão que estava consolidado há séculos ao longo de toda a Idade Média, a qual estava longe de terminar no século XV, quando surge aquele movimento artístico. Le Goff vai mais além em sua caracterização daquele período, afirmando que a representação que o homem fazia de si e do mundo só deixou de ser substancialmente medieval quando surgiu o movimento Iluminista, o capitalismo desenvolveu-se na vertente industrial e os direitos humanos foram declarados e divulgados no bojo da Revolução Francesa.
É uma visão que o próprio historiador francês admite ser minoritária, mas será que é possível refutá-la e desacreditá-la com base nos fatos? Se pudéssemos entrevistar nomes como Michelangelo, Leonardo da Vinci, Rafael, Boticelli para sabermos de suas reais convicções, talvez alguns deles diriam que não acreditavam em Deus ou que ao menos tinham sérias dúvidas sobre alguns dos dogmas do Cristianismo. No entanto, é provável também que todos eles não deixassem de se identificar como cristãos. Qual o fato relevante aqui? Aquilo que a pessoa diz que pensa ou aquilo que ela demonstra na sua obra artística, criada em um determinado meio social, econômico e cultural? Os que defendem que o Renascimento foi mais uma manifestação do espírito medieval renovado enfatizarão o conteúdo religioso que pode ser vislumbrado nas criações daquele movimento. Os que defendem que o Renascimento foi uma ruptura com os cânones medievais enfatizarão a nova linguagem utilizada na pintura, na escultura e na arquitetura, a busca incessante e deliberada das fontes clássicas como inspiração para a criação. E no final das contas, tanto uma abordagem quanto a outra podem ser sustentadas simultaneamente, porque o ser humano é intrinsecamente ambíguo e assim será tudo aquilo que ele realiza no domínio da arte, em um esforço de produção de significado. Em suma o homem renascentista que pintou as Madonnas, esculpiu as Pietàs e ergueu os duomos era um homem cristão, embora não necessariamente devoto.
Assim é que a História nunca poderá ser ciência como a física o é, porque o indivíduo que dedicar-se ao ofício de historiador nunca lidará com fatos que possam ser enquadrados em linguagem formal e objetiva (isto é, em fórmulas matemáticas) e por isso nunca poderão ser definidos unicamente em dimensões quantitativas. Daí que fica difícil aos historiadores, ao contrário dos físicos, fazer previsões que tenham razoáveis chances de se tornarem realidade e emprestarem credibilidade à ciência histórica, que na verdade é arte histórica. Se os fatos históricos são fruto da ação de indivíduos que têm uma intenção, e que pretendem saber a razão pela qual estão fazendo algo, mas que ao mesmo tempo são determinados por condições econômicas, sociais e culturais, essa interação entre as duas dimensões torna o produto do espirito humano imprevisível, porque nunca poderemos saber de antemão a maneira com os diferentes fatores irão interrelacionar-se.
E no entanto, nunca deixamos de tentar prever o futuro dos acontecimentos. O momento em que estamos ilustra essa tendência à perfeição. Quem já não leu algum artigo sobre o mundo pós-crise do COVID? Quem já não leu ou ouviu a expressão em inglês “The Great Reset, empregada para designar o estado de coisas que advirá depois que tivermos atingido a imunidade de rebanho que impedirá que o vírus se propague, seja porque grande parte da população mundial terá sido contaminada ou terá sido vacinada? Quem já não terá ouvido algum especialista falar que o home office veio para ficar, que os prédios de escritórios serão coisa do passado porque as empresas, pelo menos as que atuam como prestadoras de serviços, precisarão apenas de espaço para encontrar com clientes e nada mais? Quem já não ouviu dizer que as lojas físicas, os restaurantes de rua tornar-se-ão obsoletos pela onipresença do comércio on-line e da entrega de produtos em domicílio, como faz a superpoderosa Amazon? Quem já não ouviu dizer que o mundo do trabalho jamais será o mesmo, pois todos descobriram que a tecnologia resolve muitos problemas sem a necessidade do trabalho humano para mostrar produtos ao cliente, para marcar reuniões com várias pessoas, para aprontar o espaço físico de tais reuniões? Adeus, vendedores, secretárias, auxiliares de limpeza, garçons.
Em suma, quem não terá se deparado com a opinião de algum partidário das rupturas, que considera que há fatos na história que são pontos de inflexão que mudam tudo de uma hora para outra? Assim como houve o mundo pré-Renascentista e o mundo pós-Renascentista, os defensores dessa visão dirão que haverá o mundo pós-Covid e o mundo pré-Covid. E assim como a visão do Renascimento como um fenômeno único era compartilhada por aqueles cuja visão ideológica os levava a considerar a Idade Média como época de atraso e obscurantismo determinados pela religião, os que consideram que o mundo pós-COVID será outro também têm um viés que respalda seu retrato do mundo.
Esse viés diz respeito à concepção do progresso como inevitável e desejável: o novo sempre vem e o novo traz oportunidades. A digitalização da economia, o desaparecimento de determinados tipos de trabalho por causa da automatização de processos são justificados em nome da eficiência que criará riquezas porque permitirá a alocação de recursos em novas áreas, criando novos tipos de trabalho. É a tal da Destruição Criativa do economista austríaco Joseph Schumpeter (1883-1950). Os destruídos pelo mundo novo, ou seja, aqueles destituídos de trabalho terão que se reciclar ou pelo menos receberão uma renda mínima básica garantida com os excedentes produzidos pela nova economia.
E se adotássemos a abordagem continuísta de Huizinga e de Le Goff explicada acima, e considerássemos que a crise da COVID-19 não é o arauto de um tempo novo, mas uma manifestação de correntes profundas que vêm se desenvolvendo há décadas? A precarização dos empregos, a autonomia cada vez maior dos trabalhadores em um mundo em que eles devem assumir cada vez mais os riscos da atividade e dos rumos da sua carreira e não podem mais contar com a proteção da empresa como provedora de rumos e de recursos. Será que o home office não é apenas uma escala a mais nesse percurso em que o patrão se desvencilha de mais uma responsabilidade, qual seja providenciar a infraestrutura física para a realização do trabalho em prol da diminuição dos custos? Se virmos o mundo pós-COVID inserido numa sucessão de eventos e não como uma ruptura causada por um acontecimento meteórico por acaso não colocaremos tais desdobramentos em uma perspectiva mais comparativa e, portanto, mais crítica do estado de coisas atual, sem deslumbramentos com um futuro brilhante? Talvez percebamos que os grupos privilegiados de sempre aproveitarão a oportunidade da crise sanitária para aumentar ainda mais seu domínio sobre a economia, diminuir suas obrigações e aumentar seus lucros.
Prezados leitores, conforme tentei explicar acima, nenhuma abordagem histórica pode pretender-se ser correta, porque no final das contas ela é sempre subjetiva e vai enfatizar alguns fatos e desprezar outros e vai interpretar os fatos de acordo com os valores que a respaldam. Caso eu tenha sido clara, percebe-se que tendo a preferir a abordagem da história como o movimento lento das placas tectônicas que impulsionam as camadas profundas da história, para usar a expressão de Jacques Le Goff. Uma coisa é certa: as previsões fundam-se sempre em bases infirmes na exata medida em que refletem muito mais a concepção do mundo de quem as faz do que uma constatação de fatos objetivos. Por isso, tenham cuidado tanto com os profetas de um admirável mundo novo quanto com os pessimistas inveterados para quem nada muda e tudo é ruim. Em todo caso, lembrem-se sempre de que a história não é feita pela tecnologia ou pelas máquinas, mas pelos homens que têm boas ou más intenções.