Qualquer manejo ou maquinação oculta do devedor, para fugir ao cumprimento de suas obrigações, seja desfalcando seu patrimônio, por meio de alienações ou de quaisquer outros atos de disposição, que se mostrem injustos e prejudiciais aos interesses de seus credores, indica-se fraude contra os credores.
Definição do conceito, presente no Código Civil, de Fraude contra Credores, no Vocabulário Jurídico de Plácido e Silva
Deus, observava ele, não quer saber quanto pesam as algibeiras, quer saber quanto pesam as almas. Que importa que as nossas algibeiras estejam pejadas de dinheiro, contanto que as nossas almas estejam leves de pecados? Deus olha para as almas, não olha para as algibeiras.
Carlota alegou triunfantemente um dos dez mandamentos da lei de Deus; mas o sócio de Vergueiro fez uma tão complicada interpretação do texto bíblico, e falou com tanta convicção, que o espírito de Carlota não achou resposta suficiente, e aqui parou a discussão.
Trecho retirado do conto “Ayres e Vergueiro”, parte do livro Contos Fluminenses de Machado de Assis (1839-1908)
Prezados leitores, de acordo com os resultados do PISA (sigla em inglês para o Programa de Avaliação internacional de Estudantes) de 2018, os últimos disponíveis para consulta no site da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, o Brasil encontra-se no grupo dos países em que tanto o desempenho médio dos alunos quanto o desempenho dos melhores alunos fica abaixo da média da OCDE, ao mesmo tempo em que a porcentagem de estudantes brasileiros com desempenho ruim fica acima da média dos países pertencentes àquela organização. Em suma, nem nossos melhores alunos estão no nível do estudante médio dos países desenvolvidos.
Com base na minha própria experiência em escolas particulares, considero que a grande falha do nosso sistema educacional é colocar o conhecimento como algo formal, algo a ser adquirido mediante o cumprimento de etapas estafantes e burocráticas. O conteúdo de cada área é dado de maneira compartimentada, sem conexão com outras disciplinas e por isso ele normalmente fica desvinculado da realidade concreta e difícil de ser assimilado de maneira perene e que faça sentido para o aluno. Ouço dizer que isto está mudando nas melhores escolas. Esperemos que a mudança seja consistente ao longo dos anos, para que nosso desempenho em testes internacionais melhore e os brasileiros saem da escola sabendo ler um texto, interpretá-lo e aplicar conceitos matemáticos a problemas práticos.
Imbuída do espírito natalino, proponho nesta semana um modesto exercício de multidisciplinariedade em torno de um conto do bruxo do Cosme Velho, cuja história é banal, mas que lança luz sobre várias áreas do conhecimento, pois apresenta vários sentidos que podem ser explorados, a saber, no Direito, na Economia, na Sociologia e na Psicologia.
O enredo desenrola-se ao longo de um período aproximado de três anos: Luiz Vergueiro, dono de um pequeno negócio de venda de tecidos, casa-se com Carlota. Depois de um tempo, tendo já conseguido comprar a casa onde mora e trabalha, Vergueiro recebe a irmã do interior, Luiza, que acabara de ficar viúva e ela e Carlota dão-se muito bem. Luiza começa a trocar olhares lânguidos com um vizinho, Pedro Ayres, rapaz de trinta anos. Vergueiro comenta com sua esposa se sabe algo a respeito e ela o informa que o moleque da casa, Tobias, entregava cartas de amor de Pedro a Luiza e afiançou a sua patroa que Ayres “era moço sério e tem alguma coisa de seu”. Vergueiro decide checar as informações, pois reflete sobre a “inconveniência de confiar nas informações de um moleque ignorante”. Ele pretende ir ver Pedro pessoalmente, mas este se adianta, visitando a família. Vergueiro fica com boa impressão do moço, que embora escorregasse no português, vestia-se bem e tinha “gestos desembaraçados”. O pretendente começa a frequentar a casa, esperando até que o período de luto expirasse e ele pudesse casar-se com Luiza. A amizade entre Vergueiro e o futuro cunhado consolida-se com a entrada de Ayres como sócio do negócio de tecidos, mesmo antes do casamento.
O enlace matrimonial entre Pedro e Luiza ocorre, mas logo depois a moça fica doente e morre. Ayres é consolado por Carlota e muda-se para a casa do casal, ajudando Vergueiro na escrituração das operações da loja. Os três são unha e carne e em dois anos a prosperidade dos negócios os fazem pensar na ideia de liquidá-lo e ir viver das rendas obtidas em algum lugar aprazível. No entanto, de uma hora para outra, os negócios desandam e começam a perder dinheiro. Fazendo um inventário dos bens que tinham, Luiz e Pedro percebem que se pagassem todas as dívidas que tinham lhes sobraria muito pouco para viverem no ócio como tinham sonhado. A saída era continuar trabalhando até que auferissem novamente lucro suficiente para pagar os credores e encerrar o negócio definitivamente.
No entanto, os dois sócios têm ao mesmo tempo uma ideia brilhante: por que não ir vendendo os tecidos aos poucos e quando tivessem vendido tudo desaparecer sem cumprir suas obrigações com credores? Comunicam a ideia a Carlota, que protesta sobre a imoralidade de tal ato. Vergueiro alega que era imoral, mas o “benefício compensava a imoralidade” e solta o provérbio português “Ande eu quente e ria-se a gente” que parece querer dizer, contanto que eu esteja bem, não me importo com o que dizem os outros”. Já Ayres é mais sofisticado no seu sofisma, conforme mostrado na abertura deste artigo, pois encher os bolsos dessa maneira não era algo com que Deus se preocupasse.
Vencida a tíbia resistência de Carlota, o trio começa a colocar o plano em prática: pedem prazo maior aos credores, vendem os tecidos a preço de liquidação. Vergueiro recomenda a Ayres casar-se de novo depois que começassem a gozar do dinheiro, mas Ayres replica ao amigo que se considerava casado com Luiza para sempre. A última parte do plano é proposta por Vergueiro: ele comunica a sua esposa que vai para Buenos Aires a negócios e sugere ao cunhado e a ela que fiquem no Rio de Janeiro uns dois meses ainda, vendam tudo o que resta e depois partam para lá. Ayres adiciona um desenlace: propõe dizer a todos que Vergueiro está doente e que ele pede que Ayres lhe mande a esposa para Buenos Aires para fazer companhia. Ayres vai de acompanhante de Carlota prometendo voltar em um mês, assim os três sumirão no mundo, deixando a ver navios seus credores. Vergueiro acha a ideai sublime e parte para o rio da Prata. Ayres fica no Rio de Janeiro e em seis semanas arrecada um bom dinheiro com a venda das fazendas. Recebe uma carta de Vergueiro em que este diz que está de cama e quem escreve é o criado da hospedaria. Enquanto Vergueiro espera ansiosamente a chegada de sua esposa e de seu cunhado, estes decidem, sem comunicar a ninguém, partir para a Europa com o dinheiro e deixando Vergueiro em Buenos Aires. Fim da história.
Para começar meu exercício de exploração das possibilidades didáticas deste conto publicado em janeiro de 1871 no Jornal da Família, um culto professor de Direito Civil poderia exemplificar o que é fraude contra credores com essa pequena história, ao invés de simplesmente repetir definições de livros e dicionários, como eles sempre fazem com os alunos. Vergueiro, Carlota e Ayres deliberadamente fazem o que podem para inviabilizar o cumprimento das obrigações com seus credores, vendendo as mercadorias da loja gradualmente para que ninguém percebesse o que estavam fazendo. Quem não há de concordar que a fraude contra credores é um problema ainda premente no Brasil? Por acaso essas transferências de propriedades para laranjas, noticiadas frequentemente na imprensa, não são uma maneira de ocultar patrimônio? Um professor meu de Processo Civil afirmava que o grande desafio no Brasil não era obter uma sentença favorável de mérito, mas achar bens a executar que satisfizessem os credores. O candidato a prefeito de São Paulo, Guilherme Boulos tinha como plano de arrecadação de receitas cobrar dívidas da prefeitura. Qualquer conhecedor dos meandros da execução em nosso país sabe que muitos créditos tributários dos governos estadual, municipal e federal são incobráveis, seja porque a empresa faliu, seja porque ela não existe há muito tempo. A pequena trambicagem perpetrada pelos personagens machadianos ilustra nossa tradição empresarial de violar a confiança depositada por empregados, fornecedores e governo.
Sob a perspectiva dos usos comerciais na Terra Brasil, este conto pode ser explorado sob o ponto de vista sociológico e econômico. O sonho de Vergueiro e Ayres não era tornarem-se grandes comerciantes do setor de tecidos, expandindo os negócios ad infinitum, e com isso gerar empregos e renda para centenas de famílias. Ao contrário, almejavam simplesmente ajuntar dinheiro suficiente para tornarem-se “rentiers”, tal como os latifundiários desde a época colonial viviam à tripa forra vivendo do lucro de suas terras e do trabalho dos escravos, sem que se preocupassem em aprimorar o modo de fazer negócios. Essa mentalidade de culto ao ócio, como diferenciador em uma sociedade escravista, se choca com a mentalidade capitalista de um país como os Estados Unidos, em que o empreendedor sempre foi cultuado como o personagem que assumia riscos e proporcionava benefícios à sociedade como um todo, pela geração de riqueza, que bem ou mal fluía para as classes mais pobres.
Por fim, há o aspecto da psicologia dos personagens. Vergueiro acha-se superior ao seu moleque escravo Tobias, mas na prática chega à mesma conclusão sobre o caráter de Ayres com base em sua aparência. Luiz é ganancioso e quer levar vantagem, sem se importar com a consequência dos seus atos, mas revela-se ingênuo em relação a Pedro, que este sim é o perfeito manipulador: sabe mostrar-se amigo, zeloso do amor da finada Luiza e sabe fazer malabarismos mentais (algo muto característico da nossa mentalidade, como tentei exemplificar com o Padre Antônio Vieira e com Gilmar Mendes) para alegar que aos olhos de Deus a ganância e a fraude não têm importância. No final, ele é o vencedor levando a mulher e o dinheiro do outro. Num mundo de esperteza infinita, ganha quem usa melhor a linguagem, os gestos e a figura necessários para fazer com que as pessoas ao seu redor ajam em seu benefício. Um perfeito psicopata narcisista.
Prezados leitores, em um opúsculo de 18 páginas, Machado de Assis nos dá lições sobre narcisismo, psicopatia, fraude contra credores, relações entre senhores e escravos no Brasil, capitalismo subdesenvolvido e economia rentista. Ele pode ser usado tanto em uma aula de História no ensino médio quanto em uma aula de Economia ou de Direito Civil na Universidade. Oxalá que os ventos da multidisciplinariedade transformem a educação brasileira e a tornem menos um exercício de retórica desprovida de significado, valendo-se do patrimônio intelectual que nós brasileiros acumulamos por meio de escritores do nível do primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras.