Ele fustiga a desumanidade dos senhores do açúcar que batem nos trabalhadores dando-lhes chicotadas, que os colocam no tronco ou no pelourinho. Mas ele jamais ataca a instituição da escravidão. Ele admite sua necessidade. Simplesmente ele gostaria que ela fosse doce. […] Estamos no século do pensamento barroco. Ele se dedica a acrobacias lógicas, metafísicas e teológicas vertiginosas. […] “As chicotadas e os castigos são a graça do escravo porque o resultado é a salvação eterna deles.” […] Vieira não tem medo de dizer que o Negro tem a missão, como Cristo antes, de salvar a humanidade por seu sacrifício.
Trecho retirado do verbete “Negros Escravos” sobre a escravidão no Brasil, retirado do livro “Dictionnaire amoureux du Brésil” do escritor e jornalista francês Gilles Lapouge (1923-2020)
Nesta cidade [Roma] que oscila entre seus cem mil habitantes e os sete mil peregrinos do ano do jubileu, é evidente que toda intervenção artística, mais do que à urbs (a cidade), parece se destinar à orbis (o território). Não há outra maneira de explicar as construções gigantescas e as festas, que custavam muitas vezes tanto quanto um edifício, organizadas segundo o método da “propaganda fide”. A arte como artifício tem um lugar privilegiado, o espaço do espetáculo.
Trecho retirado do livro Bernini, sobre o escultor e arquiteto napolitano Gian Lorenzo Bernini (1598-1680), escrito por Maurizio Fagiolo em colaboração com Angela Cipriani
Prezados leitores, no livro citado neste humilde espaço na semana passada, Viagem à Terra do Brasil, Jean de Léry (1534-1611) descreve a música, a comida, as características físicas e psicológicas, a religião, as instituições sociais (poligamia, antropofagia, funerais) e as leis dos índios tupinambás com os quais conviveu depois de sua infeliz passagem pela colônia da França Antártica no Rio de Janeiro. Nesta primeira metade do século XVI, a colonização do Brasil ainda era incipiente e os nativos ainda eram donos do seu destino, apesar das trocas cada vez mais intensas com os europeus. Eles ainda não tinham começado a ser aprisionados em larga escala para trabalharem nas lavouras dos brancos.
A fim de fazer a diferenciação entre os índios escravizados e os africanos escravizados, no seu “Dictionnaire amoureux du Brésil” Gilles Lapouge intitula seu verbete sobre a escravidão no Brasil “Negros escravos” para referir-se àqueles que acabaram se tornando a mão de obra nos engenhos de açúcar em contraposição aos índios denominados negros da terra. Porque se é verdade que os índios foram caçados ao longo da penetração do europeu pelo interior das terras brasileiras, Lapouge explica que sua fragilidade, o fato de adoecerem muito facilmente, trabalharem mal e não quererem obedecer torna os índios imprestáveis para o serviço pesado da plantação, corte e moagem da cana.
É certo que os índios tinham sua própria organização econômica e social, estavam naquele território há milhares de anos e como Jean de Léry nos mostra, consideravam estranha e indigna a ideia de acumulação de bens além do necessário para satisfazer suas necessidades, as de sua família e da comunidade. De forma que o colonizador europeu optou pelos africanos da Guiné e Angola, os quais, embora caros, eram robustos e mais dóceis.
Até aqui todas essas informações que nos traz Lapouge sobre o motivo de os índios terem sido substituídos pelos negros africanos são familiares a qualquer brasileiro que tenha tido aulas decentes de história do Brasil. Ocorre que o antigo correspondente do jornal O Estado de São Paulo na França dá uma contribuição original sobre o assunto valendo-se do seu repertório cultural, mencionando o papel do padre Antônio Vieira (1608-1697) na elaboração de uma justificativa moral para a escravidão. Para explicar o raciocínio do jesuíta, Lapouge vale-se de dois conceitos familiares ao público europeu: o barroco e o cristianismo.
O fato é que em 1537 o papa Paulo III havia decidido que os índios tinham alma e portanto, escravizá-los era contra os preceitos cristãos. Quanto aos africanos, a Igreja não disse nada a respeito, o que permitiu o contorcionismo mental de Vieira que Lapouge explica: o trabalho escravo era um mal necessário, sem o qual a exploração econômica do Brasil teria sido inviável, já que só os negros tinham a capacidade física de trabalhar da maneira contínua e intensa exigida pelas plantations em clima tropical. Para dar um verniz de respeitabilidade a tal fato da vida material da colônia e viabilizar sua organização sobre bases cristãs, reais ou fictícias, Vieira argumenta que a dura vida dos africanos no Brasil, o trabalho sob o sol inclemente, os castigos físicos eram análogos ao sofrimento suportado por Jesus Cristo em sua passagem pela Terra. Assim como o Filho de Deus se fez homem para purgar os pecados da humanidade e dar-lhe a chance da salvação eterna, os negros também se sacrificavam em prol dos outros homens.
Assim é que o jesuíta lisboeta consegue uma façanha intelectual: tornar a crueldade, as injustiças cometidas contra os escravos atos perfeitamente cristãos, porque inseridos no grande projeto de redenção da humanidade pela fé no salvador do mundo. Um aparente paradoxo resolvido por meio de malabarismos retóricos, tal como um dos maiores expoentes da escultura e arquitetura barrocas, Bernini, fez repetidas vezes em suas obras “convidando, por meio da sedução da sua virtuosidade técnica, a uma experiência diferente da realidade”, conforme define o livro citado na abertura deste artigo. Cada um a seu modo, tanto o padre Vieira quanto o artista italiano são instrumentos da Igreja Católica utilizados para a propaganda da fé, a conquista de novos fiéis para compensar a perda provocada pelo cisma protestante.
Trabalhando principalmente em Roma, Bernini organiza espetáculos para o Carnaval, a Quarantore (exercício de devoção ao Santíssimo Sacramento consistente na oração por 40 horas consecutivas) e outras festas canônicas para encantar os espectadores e atraí-los à beleza dos ritos católicos. Vieira, em seus sermões pregados no Brasil, ao mesmo tempo que oferece aos colonizadores uma justificativa moral para a escravidão dos negros, em troca consegue garantir para a Igreja de Roma as almas dos indígenas confinados em missões dirigidas por jesuítas. Dessa maneira, os latifundiários colonizadores podem explorar economicamente as terras do Brasil usando a imprescindível mão de obra africana; os indígenas são catequizados e todos compartilham com maior ou menor devoção, com maior ou menor autenticidade, a fé católica.
Nesse sentido, o enredo barroco desenrola-se tanto em Roma quanto no Novo Mundo: à exuberância dos espetáculos organizados por Bernini corresponde um Estado Pontifical cada vez mais enfraquecido politicamente; à virtuose argumentativa de Vieira colocando a escravidão como algo cristão corresponde uma desigualdade estrutural na colônia que desafia todos os preceitos cristãos da dignidade inerente ao homem, feito à imagem de Deus.
Segundo Gilles Lapouge, no verbete citado acima, talvez cinco milhões de escravos tenham sido trazidos para o Brasil durante quase quatro séculos, sob o beneplácito da Igreja. O Éden vislumbrado por Jean de Léry no século XVI, que chegou a ver nos tupinambás da Baía de Guanabara as virtudes éticas dos protestantes, logo se transformaria no calvário de africanos desenraizados, que muitas vezes tentavam o suicídio comendo terra.
Prezados leitores, sob essa perspectiva, o Brasil adquiriu uma indelével alma barroca, feita de luzes e sombras, de equilíbrios precários entre opostos. Como tentarei mostrar aqui na semana que vem, essa característica, tão bem exemplificada por Vieira e explicada por Gilles Lapouge em seu Dictionnaire amoureux du Brésil, persiste até hoje, nos locais os mais inusitados.