As mulheres educadas do Renascimento emanciparam-se a si mesmas sem nenhuma propaganda de emancipação, somente por sua inteligência, personalidade e tato, e pelo aumento da sensibilidade dos homens aos charmes tangíveis e intangíveis do sexo feminino. Elas influenciaram sua época em todas as áreas: na política pela sua capacidade de governar estados na ausência dos maridos; na moral pela sua combinação de liberdade, boas maneiras e devoção; na arte por terem adquirido uma beleza matronal que serviu de modelo a centenas de Madonnas; na literatura por abrirem sua casa e seu sorriso a poetas e intelectuais.
Trecho retirado do livro “The Renaissance, A History of Civilization in Italy from 1304-1576 A.D.” de William James Durant (1885-1981), filósofo, historiador e escritor americano
Provavelmente ela cultivava os livros mais como uma colecionadora do que como uma leitora ou estudante; ela respeitava Platão, mas na verdade preferia os romances de cavalaria que divertiam até os Ariostos da sua geração e os Tassos da próxima. Ela amava coisas finas e jóias, mais do que os livros e a arte; mesmo quando já era mais velha, as mulheres da Itália e da França tinham-na como espelho da moda e rainha do gosto. Era parte da sua diplomacia convencer embaixadores e cardeais pelo atrativo da sua pessoa, seu modo de vestir, suas maneiras e sua mente; eles achavam que estavam admirando sua erudição ou sua sabedoria, quando na verdade estavam desfrutando da sua beleza, seu traje ou sua graça. Raramente ela era profunda, exceto em questões de estado. Como praticamente todos os seus contemporâneos, ela consultava os astrólogos e punha em prática seus planos no momento do alinhamento das estrelas.
Trecho retirado do livro “The Renaissance, A History of Civilization in Italy from 1304-1576 A.D.” de William James Durant (1885-1981), filósofo, historiador e escritor americano sobre Isabella D’Este (1474-1539), Marquesa de Mântua
Prezados leitores, na semana passada tentei resumir neste meu humilde espaço o retrato que Will Durant nos dá de Michelangelo, de como as obras deixadas pelo escultor, arquiteto e pintor nascido em Caprese ficaram muito aquém daquilo que ele vislumbrou ao longo de toda sua vida em termos de ideais e projetos a serem colocados em prática. O fato de ele ter deixado um legado que sobrevive, a despeito de obras que foram destruídas por terceiros e pelo próprio artista, legado este que é admirado por milhões de pessoas a cada ano, mostra a famosa terribilità michangelesca em ação, lutando contra tudo e todos em prol da arte.
Mas nem todos os seres humanos que passaram pela vida de Michelangelo foram obstáculos à concretização dos seus ideais estéticos. Se houve príncipes da Igreja e dos Estados caprichosos e imprevisíveis que o fizeram fazer coisas que ele não queria, ou deixar pela metade obras que lhe eram caras, Michelangelo também pôde contar com o apoio emocional e espiritual de uma mulher, Vittoria Colonna (1490-1547), viúva do Marquês de Pescara, que encarnou para o artista esta mulher renascentista descrita por Durant na abertura deste artigo: a mulher que é mais livre e mais educada porque goza dos confortos materiais proporcionados pela geração de riqueza com o comércio e por isso pode dialogar de igual para igual com os homens igualmente letrados, e não simplesmente ficar restrita a realizar atividades femininas e a conviver somente com mulheres; ao mesmo tempo, é uma mulher educada na religião cristã e que não deixa de cultivá-la. Vittoria, além de poetisa, era adepta do evangelismo, uma corrente religiosa que procurou renovar a fé ante o desafio do luteranismo, pregando a imitação de Cristo e um cristianismo voltado para o espírito e não para os rituais repetidos mecanicamente na Igreja Católica.
Vittoria conheceu Michelangelo quando ela já tinha 50 anos e ele 67, e a ela o artista escreveu poesias em que a descrevia como a mediação entre ele e o Céu, em uma época em que Michelangelo passou a se preocupar com a salvação da sua alma. A devoção, a bondade e a fidelidade da sua “Deusa” amenizavam o pessimismo do gênio sempre frustrado e ranzinza por conta dos seus fracassos. Michelangelo estava com Vittoria quando ela morreu e depois disso “ele sucumbiu muitas vezes ao desespero, agindo como um homem que havia perdido a razão”, nos informa Ascânio Condivi (1524/1525-1574) em sua biografia intitulada “Vita di Michelangelo Buonarotti”.
A Marquesa de Pescara certamente não foi a musa inspiradora das obras de Michelangelo, pois a força e a motivação eram internas a ele, mas contribuiu para tornar-lhe a vida mais doce e menos pesada. Em uma dimensão menos espiritual, pode-se dizer que a vitalidade, o otimismo, e a vasta cultura de Isabella D’Este contribuíram para tornar leve a vida no Marquesato de Mântua, para onde Isabella mudou-se definitivamente aos 14 anos para casar-se com o herdeiro, Gianfrancesco D’Este. De fato, a capacidade de Isabella de exercer seus charmes femininos com tato, delicadeza e inteligência, além de lhe permitir ajudar o marido a governar, salvaram Mântua das garras de César Bórgia, dos reis franceses Luís XII e Francisco I e depois do Imperador Carlos V durante as Guerras Italianas (1494-1559).
Os feitos de Isabella não param por aí. Além de garantir a independência de Mântua, ela conseguiu tornar seu segundo filho Ercole cardeal e convenceu Carlos V a tornar o primogênito Federigo duque. Em um mundo dominado por homens fazedores de guerras, a Marquesa de Mântua fez uso da palavra e das suas graças femininas para dobrar a força aos seus desejos. Nesse sentido, o empoderamento das mulheres da elite na época do Renascimento era um esforço sutil cujo objetivo não era desafiar frontalmente os homens e garantir prerrogativas, como fazemos hoje, mas amolecê-los, torná-los menos brutais e implacáveis. As virtudes cristãs eram inúteis e contraproducentes para conquistar e manter o poder, como ensinara Maquiavel. Mas a conciliação praticada por diplomatas hábeis como Isabella D’Este acabavam dando um papel a tais virtudes na medida em que buscava a paz e o perdão recíproco das partes na disputa.
Prezados leitores, Will Durant em sua História da Civilização na Itália nos mostra que, cada uma a seu modo, Vittoria Colona e Isabella D’Este colocaram em prática o Renascimento sob o ponto de vista feminino: ao mesmo tempo emancipadas para atuar no mundo como raramente a mulher havia atuado na Idade Média, elas não deixavam de reforçar o papel feminino de transmissoras e cultivadoras da herança cristã quer por sua prática religiosa no caso de Vittoria, quer por sua atuação política e cultural como diplomata de seu Estado de adoção, Mântua, e patrona de artistas, no caso de Isabella. O Renascimento feminino: uma combinação de fé no poder da tradição e da mudança em prol de um mundo mais belo, mais pacífico e ordeiro, onde as mulheres pudessem florescer.