Não podemos saber o que é Deus, nem entender um mundo com tanta mistura do bem e do mal, do sofrimento e da beleza, da destruição e do sublime; mas na presença de uma mãe tomando conta do seu filho, ou de um gênio dando ordem ao caos, dando significado à matéria, nobreza à forma ou ao pensamento, nós nos sentimos o mais perto que podemos estar da vida, da mente e da lei que constituem a inteligência ininteligível do mundo.
Trecho retirado do livro “The Renaissance, A History of Civilization in Italy from 1304-1576 A.D.” de William James Durant (1885-1981), filósofo, historiador e escritor americano
E na verdade a multitude de figuras, a terribilità e a grandeza da obra são tais que não se podem descrever, porque está cheia de todos os tipos humanos possíveis, e todos maravilhosamente representados: soberbos, invejosos, avaros e luxuriosos, e outros da mesma natureza podem ser amplamente reconhecidos por qualquer espírito belo […]
Trecho retirado do livro “Vidas” de Giorgio Vasari (1511-1574), pintor, decorador, arquiteto, escritor, historiador, teórico e colecionador italiano
Prezados leitores, um panorama do Renascimento na Itália não poderia deixar de lado a arte produzida naquele período e naquele local. Para abordar esse assunto, William Durant – o qual já introduzi a vocês na semana passada –, conforme ele explica no prefácio do livro, estudou ao vivo e a cores praticamente todas as obras de arte que ele menciona, o que lhe permite abordar a vida e a obra de cada pintor ou escultor e ao final elaborar uma apreciação final que embora não seja a de uma pessoa com conhecimento técnico especializado em pintura, escultura e arquitetura, é a de um homem sensível à beleza e ao poder da arte, conforme mostra o trecho que abre este artigo, o qual encerra a descrição que Durant faz de Michelangelo Buonarotti (1475-1564), o pintor da Capela Sistina, o escultor da Pietà e do David, suas obras mais conhecidas. É da descrição feita por Durant em seu livro que tratarei neste artigo.
Durant divide a vida de Michelangelo em cinco períodos. O primeiro é a juventude de 1475 a 1505, quando ele frequentou os jardins de São Marcos, onde os Médicis expunham suas coleções de estatuária e arquitetura antigas para que os jovens artistas pudessem aprender com os mestres da Grécia e de Roma. Lorenzo de Médici (1449-1492), o chefe da família então e governante de Florença, percebeu o talento de Michelangelo e o levou para morar em sua casa. De 1490 a 1492 o jovem artista comeu na mesma mesa que Lorenzo e os humanistas a quem o homem mais poderoso da cidade patrocinava: Policiano, Pico, Ficino e Pulci e presenciou as discussões sofisticadas que eles travavam sobre política, literatura, filosofia e arte. Digna de nota em sua juventude foi sua atuação como falsário. Michelangelo esculpiu um cupido dormindo, hoje perdido, o qual ele envelheceu artificialmente e vendeu ao cardeal Riario como uma antiguidade. O contrato para a realização da Pietà foi assinado em 1498, durante a primeira estadia de Michelangelo em Roma. O sucesso da escultura, considerada pelo rei da França, Francisco I, como a principal realização do artista, trouxe a Michelangelo fama e fortuna. É desse período também o David, esculpido de 1501 a 1504 mediante solicitação da guilda dos produtores de lã de Florença.
O segundo período da vida de Michelangelo vai de 1505 a 1513, quando realiza trabalhos para o papa Júlio II (1443-1513): a escultura em bronze do pontífice, colocada em 1508 na frente da Igreja de São Petrônio, em Bolonha, mas que foi destruída em 1511, a mando de Giovanni II Bentivoglio, o senhor de Bolonha então e a pintura da Capela Sistina, na qual o artista trabalhou de 1508 a 1512, com a ajuda de assistentes que seguiam suas instruções. A respeito dessa obra, Durant comenta que Michelangelo não se via como pintor, mas como escultor e por isso todas as figuras sugerem a escultura, exibindo o corpo humano como a mais alta corporificação da energia, da vitalidade e da vida. Tanta vitalidade, que permitiu ao artista traçar um painel completo das possibilidades humanas, tal como descrito por Vasari no trecho citado acima, fez com que a obra fosse também duramente criticada pela indecência dos corpos nus que fugiam ao tema religioso do Julgamento Final. Após o encerramento do Concílio de Trento em 1563, reunido para reformar a Igreja Católica e combater a heresia protestante, decidiu-se que os nus seriam cobertos e a tarefa coube inicialmente, de 1564 a 1565, ao pintor Daniele de Volterra, discípulo de Michelangelo, que por isso passou à história sob a infeliz alcunha de “Il Braghettone”, o fazedor de calças.
O terceiro período da vida de Michelangelo vai de 1513 a 1520, quando o artista trabalha sob as ordens do novo papa Leo X (1475-1521), filho de Lorenzo de Médici. Leo queria terminar a construção da Igreja de São Lourenço, o santuário da família, onde se encontravam os túmulos de Cosimo de Médici (1389-1464), avô de Lorenzo e do próprio Lorenzo. O trabalho, no entanto, não caminhou, porque o afável papa não conseguiu relacionar-se bem com Michelangelo, famoso por sua terribilità. Durant define essa qualidade como uma energia, uma força selvagem que sustentou o corpo do artista por oitenta e nove anos, mas também um poder da vontade que mantinha aquela energia canalizada para um único propósito, a arte, fazendo seu detentor ignorar todo o resto, incluindo a limpeza do corpo e das roupas, as boas maneiras com as pessoas. Por outro lado, sua terribilità permitiu a Michelangelo continuar inquebrantável até o fim, a despeito das promessas não honradas, das amizades desfeitas, da saúde e do espirito em frangalhos. O corpo e a mente ao final estavam destroçados, mas o trabalho fora feito: a maior pintura, a maior escultura da época.
O quarto período da vida de Michelangelo vai de 1520 a 1534, quando o artista realiza a Nova Sacristia da Igreja de São Lourenço para o papa Clemente VII (1478-1534), sobrinho de Lorenzo de Médici e portanto primo do papa Leo X. Ele consegue esculpir somente dois dos seis túmulos contratados inicialmente para ocupar o local. Além disso, Michelangelo projeta a Biblioteca Laurentiana em 1523, que foi finalizada mais tarde por Vasari para abrigar a enorme coleção de livros da família. A quinta e última fase da vida do gênio que sabia direcionar sua energia por uma vontade consistente, conforme a definição de Durant, vai de 1534 a 1564, ano de sua morte. Tendo experimentado repetidas frustrações ao longo da vida – a fachada inacabada da Igreja de São Lourenço, a estátua do papa Júlio II destruída em Bolonha, os túmulos dos Médici não finalizados, Michelangelo é um homem azedo, cansado. Aos 75 anos, em 1550 termina de pintar, a contragosto, A Conversão de São Paulo e o Martírio de São Pedro na capela construída a mando do Papa Paulo III (1468-1549) no Vaticano. Durant considera tudo um exagero da forma humana por um artista que ao pintar esculpia. Em 1539 realiza um busto de Brutus, o homem que matou Júlio César para salvar a república romana.
Prezados leitores, apesar do muito que se perdeu da obra de Michelangelo, incluindo muitos desenhos que ele distribuía a artistas para que realizassem pinturas, sua Batalha de Cascina, ilustração elaborada em uma competição com Leonardo da Vinci para decorar a parede da Sala do Conselho Maior do Palácio Vecchio, a Leda que teria sido queimada a mando da rainha Ana da Áustria da França por ser excessivamente lasciva, quem já viu o David de perto pôde admirar a determinação e a virilidade contidas no olhar do herói. Quanto à Capela Sistina, em nossa época, de turismo em massa, ao menos antes da pandemia do covid-19, a multidão de pessoas em um espaço pequeno e os guardas repetidamente pedindo silêncio impedem uma apreciação digna da obra. E sobre a Pietà, apesar de enclausurada dentro de um vidro por razões de segurança, Durant foi feliz na sua expressão da impressão que a escultura causa, citada na abertura deste artigo.
Ao percorrer os 89 anos de vida do gênio do Renascimento, o escritor nos mostra a complexidade do período, povoado de homens que se abriam para o secularismo, para a vida em todas as suas manifestações, livres das amarras morais colocadas pela religião cristã, mas ao mesmo tempo se preocupavam com a salvação da alma, como mostra o Julgamento Final. Se a obra de Maquiavel mostra essa dialética no campo da arte da conquista e da manutenção do poder, as formas contorcidas e musculosas de Michelangelo também expressam o embate entre o cristianismo que já não mais fazia a cabeça das elites intelectuais, mas ao mesmo tempo era parte da cultura enraizada de todos, e o mundo de possibilidades aberto pela redescoberta da civilização greco-romana. Caso o mundo algum dia volte ao normal e pudermos voltar a viajar para encontrar os chineses pelo mundo, corramos à Galeria da Academia, ao Museu Barghello e ao Vaticano para testemunharmos o legado deste grande misantropo, Michelangelo Buonarotti!