A política de Rui Barbosa tinha o objetivo oposto daquele que até então dominara a esfera maior de governo no território. E tal objetivo vinha a ser o mesmo do governo de qualquer outro país na era capitalista: fomentar a riqueza da nação, favorecer os produtores ligados ao mercado interno e transferir os riscos das oscilações cambiais para os importadores – garantindo a renda dos produtores nacionais. […] a lei que conferiu aos cidadãos o poder de formar empresas sem autorização do governo, somada às garantias de crédito e à maior oferta monetária, provocaram uma mudança radical na dinâmica do setor privado.
Trecho retirado do livro “História da Riqueza no Brasil”, de Jorge Caldeira, sobre as reformas econômicas realizadas por Rui Barbosa (1849-1923), Ministro da Fazenda do Primeiro Presidente da República, Marechal Deodoro da Fonseca
Mas as receitas estaduais tiveram um efeito importante: permitiram um emprego novo do dinheiro público, com alta concentração de investimentos em capital humano. As despesas com educação, saúde, imigração e segurança – quase sempre visando a melhoria das condições de formação da população – representaram, em 1896, 62% dos gastos totais do estado. As obras públicas, investimentos em infraestrutura, totalizaram 35% dos gastos no mesmo ano.
Trecho retirado do mesmo livro sobre os efeitos das reformas econômicas sobre o setor público do Estado de São Paulo na década inicial da República
Para construir uma sociedade ideal é preciso que o governo controle os serviços públicos básicos — terra, finanças, riqueza mineral, recursos naturais e monopólios de infraestrutura (incluindo a internet hoje em dia), produtos farmacêuticos e assistência médica de forma que os serviços básicos possam ser fornecidos ao menor preço. Isso tudo foi descrito no século XIX por analistas nos Estados Unidos. Foi Simon Patten [1852-1922] quem disse que o investimento público é o “quarto fator de produção”.
Trecho retirado da entrevista dada pelo economista Michael Hudson, professor de Economia na Universidade do Missouri “O Oráculo de Delfos era o Davos deles”, em 5 de abril
Prezados leitores, vocês conseguem imaginar no Brasil um jurista que tenha tido uma atuação notável e louvável em área não jurídica? Pelo menos desde a deflagração da Operação Lava Jato, em março de 2014, a pauta das discussões nacionais é ditada pelos causídicos, e ela invariavelmente diz respeito a assuntos como interpretação da Constituição e das leis infraconstitucionais, prerrogativa de foro, e por aí vai. O mais recente tópico, o artigo publicado na revista Crusoé sobre o suposto envolvimento do Ministro do STF Dias Toffoli com a famigerada Odebrecht, que acaba de ser corresponsável pelo suicídio do ex-presidente do Peru, Alan Garcia, no último dia 17, girou basicamente em torno destas duas questões: Quem tem a titularidade da ação penal no ordenamento jurídico brasileiro quando o ofendido é membro do STF, o órgão de cúpula do Judiciário? Como devem ser sopesados direitos fundamentais conflitantes, garantidos pela Constituição Federal, a saber a liberdade de expressão, e o direito à honra? Enquanto Raquel Dodge dava carteirada em Dias Toffoli ordenando o arquivamento do inquérito de investigação de fake news contra o STF, incluindo a reportagem da Crusoé, e Alexandre de Moraes, companheiro dileto do presidente do Supremo, revidava ignorando a ordem da Procuradora-Geral da República, a grande maioria do povo brasileiro, 26 milhões dos quais estão ou desempregados ou subempregados, tinha preocupações mais prementes, para dizer o mínimo. No nosso contexto atual, em que não sabemos se teremos emprego nas próximas décadas que nos permita aposentarmo-nos com uma renda mínima, essas disputas se assemelham a discutir o sexo dos anjos como forma de matar o tempo de quem tem a vida ganha ou afagar a vaidade ferida.
Nem sempre os maiores juristas brasileiros mostraram-se tão insensíveis à realidade econômica e social do povo. E o exemplo que quero citar é o de Rui Barbosa, que, para quem conhece tem uma certa má fama: mandou destruir livros com registros de entrada de escravos no Brasil, o que dificultou a vida dos historiadores que tentam estudar a escravidão, e foi o autor da política conhecida como Encilhamento, que levou à emissão descontrolada de moeda e a uma crise financeira. O objetivo aqui não é negar os dois fatos, mas dar nuances a esse retrato, conforme houve o avanço dos estudos econométricos e estatísticos no Brasil, nas últimas décadas, refletido no livro de Jorge Caldeira acima mencionado. E ao dar mais detalhes sobre o que Rui Barbosa fez como Ministro da Fazenda, perguntar se não poderíamos tirar uma ou duas lições daqueles primeiros tempos da República e aplicá-las à nossa combalida Nova República?
Em janeiro de 1890, Rui Barbosa fez publicar quatro decretos que rompiam com as restrições da época imperial. O primeiro decreto dava permissão às empresas ou sociedades anônimas de estabelecerem-se sem a autorização do governo e estipulava que os acionistas teriam responsabilidade limitada ao capital aplicado. O segundo decreto permitia que os proprietários de terras emitissem títulos de penhor sobre elas, por meio de um contrato direto entre o dono da terra e o fornecedor de crédito, o que acabava com a restrição que então vigorava no Brasil em relação à execução de fazendas e engenhos. O terceiro decreto regulamentava a hipoteca e as formas de cobrança, mercantilizando a propriedade das coisas. O quarto decreto estabelecia como garantia do meio circulante os títulos da dívida nacional, tornando a moeda passível de flutuação e cujo valor não seria mais zelosamente mantido pela vontade de D. Pedro II.
Conforme Caldeira exemplifica em seu livro por meio de dados sobre volume de produção, número de empresas criadas e extensão da malha viária, essas medidas criaram um círculo virtuoso na economia: o crédito aumentou, os bancos expandiram suas atividades e pasmem, emprestaram dinheiro para fazendeiros plantarem e para empreendedores criarem fábricas e construírem ferrovias, as quais fomentaram o mercado interno de produtos que não aqueles destinados à exportação. Em São Paulo, o aumento das receitas governamentais permitiu que o Estado cumprisse o papel crucial de prover os serviços públicos que permitiam aos agentes econômicos produzirem de maneira mais fácil. Esse modelo de expansão do crédito para estimular a economia passou por um grande atropelo logo em novembro de 1890, quando o banco inglês Barings anunciou uma suspensão de pagamentos devido a problemas com seus investimentos em títulos argentinos. Isso levou a um efeito de manada e os investidores europeus desovaram suas posições em títulos de governos latino-americanos. Assim, se de um lado a expansão do crédito trouxe efeitos de longo prazo na economia brasileira porque ele foi aplicado na produção, de outro o lastro da moeda em títulos a tornava vulnerável à fuga de capitais. Vejam que a crise da dívida na América Latina não começou na década de 80 do século XX, mas um século antes.
Que lições o advogado baiano Rui Barbosa pode dar aos juristas que hoje ditam a pauta do Brasil? Ou até ao encarregado da política econômica atual, Paulo Guedes? Rui Barbosa, em sua Campanha Civilista, quando foi candidato a presidente contra Hermes da Fonseca em 1910, viajou por Minas Gerais, Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro, fazendo comícios, conversando com a população. Será que a cúpula do Judiciário brasileiro não faria bem se desse ouvidos ao povo a respeito do que deve ser prioridade em termos de justiça? Como acelerar o andamento dos processos, como diminuir a sensação de incerteza sobre as decisões judiciais? A Paulo Guedes Rui Barbosa poderia dizer que à luz da sua breve e marcante experiência como Ministro da Fazenda, é preciso ter como foco a “prosperidade do trabalho”, o “movimento industrial”. Será que a reforma da previdência, se aprovada, por si só acelerará a atividade econômica como Rui Barbosa o fez por meio de seus quatro decretos? Ou será apenas uma maneira de o governo economizar dinheiro para poder continuar pagando dívidas, sem realizar investimentos públicos? Aguardemos, e enquanto isso saudemos Rui Barbosa como um jurista com o pé na estrada e não encastelado em sua Torre de Marfim, discutindo tecnicalidades.