O uso do Judiciário como instância maior de defesa do corporativismo e do reconhecimento de direitos adquiridos levou esse poder a funcionar em Portugal como uma espécie de órgão emissor da moeda da diferença social […] A derrogação de um direito adquirido – fosse a propriedade de bens, a posse de ofícios, a detenção de um privilégio irrevogável, o direito de não pagar impostos ilegalmente criados – só era possível em sede judicial.
Trecho retirado do livro “História da Riqueza no Brasil” de Jorge Caldeira
O princípio da solidariedade é que está implícito em qualquer análise que se faça do Direito de Seguridade Social. O art. 3º da Constituição da República positiva que: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I –construir uma sociedade livre, justa e solidária”.
Trecho retirado do livro “Curso de Direito da Seguridade Social”, de Augusto Massayuki Tsutiya
Para mim, não dá para cair abaixo do R$1 trilhão [impacto fiscal da reforma] (em 10 anos) que se propôs. Pensando friamente, acho que vamos ter uma reforma boa, mas, possivelmente, limitada. E aí o problema vai seguir. As pessoas mais otimistas acreditam que essa reforma, ainda que um pouco desidratada no final, pode significar o início de um ciclo virtuoso de outras reformas, mas, na minha leitura, as probabilidades jogam contra.
Trecho da entrevista dada pelo ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga, ao jornal O Estado de São Paulo, em 3 de março
Prezados leitores, sei que é época de Carnaval e é tempo de nos divertir, mas o assunto da Previdência, que vem nos atormentando desde 2017, dominará a pauta do Congresso neste ano e determinará o sucesso ou o fracasso do governo Bolsonaro. Não sou eu quem digo isso, são os especialistas, os economistas, os professores universitários, os banqueiros. É preciso reformar a Previdência para diminuir o rombo nas contas públicas, permitir uma queda nos juros e viabilizar um aumento dos investimentos públicos e privados. A essa altura do campeonato há pouca discordância em relação a esse ponto. O problema começa no conteúdo apresentado pela equipe econômica que assumiu em janeiro deste ano, ou talvez até na falta dele. Considerada pela revista VEJA como uma proposta ambiciosa por atacar privilégios, ela é vendida pelo governo como uma “Nova Previdência: É para Todos, É Melhor para o Brasil.” Será?
Tentarei responder a essa pergunta descrevendo a situação nas “Terras Baixas da América do Sul”, para tomar emprestada uma expressão de Jorge Caldeira usada quando ele descreve o que os europeus encontraram ao chegar aos trópicos americanos. Para tanto, recorrerei a uma analogia, a dos Três Estados do Antigo Regime que vigoraram na Europa até a Revolução Francesa: cada estamento tinha seus próprios direitos e obrigações garantidos por leis escritas, a que o próprio rei de Portugal obedecia, como é explicado em A História da Riqueza no Brasil.
Em termos previdenciários, o Primeiro Estado brasileiro é formado por aqueles que não só já adquiriram o direito a uma polpuda aposentadoria integral, como já a usufruem. Quando digo polpuda falo de filhas e viúvas de militares que recebem 59.000 reais, como foi noticiado pelo jornal O Globo há duas semanas, membros do Judiciário, que de forma perfeitamente legal ganham benefícios previdenciários que ultrapassam o teto do funcionalismo público. Isso porque os auxílios de diversos tipos que foram sendo incorporados à remuneração são considerados como de natureza indenizatória e portanto puderam ser incorporados gradual e inexoravelmente aos rendimentos totais, sem que fossem considerados parte do salário de contribuição para fins de incidência da alíquota previdenciária e sem que fossem considerado salário que ultrapasse aquele ganho pelos ministros do STF. Considerando o aumento substancial da expectativa de vida verificado no Brasil nos últimos anos, esses agraciados vão usufruir de benefícios que excederão em muito a contribuição previdenciária que pagaram e pagarão ao longo da vida. Pelo princípio da solidariedade, nós que estamos trabalhando atualmente estamos financiando essas benesses, sem que nós pobres mortais possamos sequer sonhar com elas, porque a porteira já está fechada para novos entrantes nesse clube exclusivo. Benesses essas que, como diria um ex-Ministro do Trabalho, são “imexíveis”, porque de acordo com o artigo 194, parágrafo único, inciso IV da Constituição Federal, os benefícios previdenciários são irredutíveis. Resumindo, só refundando a ordem jurídica brasileira, ou em português claro, só uma guerra civil diminuiria ou cortaria os benefícios pagos a essas pessoas.
Coloco nesse grupo também aqueles funcionários públicos que ingressaram no serviço até 2003, e portanto, têm direito à aposentadoria integral. É verdade que estes não têm um direito inexpugnável como aqueles que já recebem a aposentadoria ou pensão têm, mas o que a turma do Posto Ipiranga propõe para fechar a lacuna entre aquilo que a lei lhes dá como direito e aquilo que contribuíram para dele gozar é um aumento da alíquota de contribuição de até 22%. Associações de funcionários públicos já começaram a estrilar dizendo que tal taxa tem natureza confiscatória e é portanto inconstitucional, mas o fato de ela incidir sobre a porção de rendimentos que é considerada salário e não indenização fará com que em muitos casos a mordida seja bem menor do que seria se não houvesse essas distinções formalistas ente salário e indenização destinadas a consolidar privilégios.
Passemos ao Segundo Estado, formado pelos funcionários públicos que ingressaram no serviço entre 2004 e 2013. Se hoje eles têm direito a se aposentar à média de 80% dos maiores salários de contribuição, Paulo Guedes e companhia propõem colocá-los na vala comum do Terceiro Estado, que têm direito a receber no máximo R$ 5.839,45, que é o teto do INSS. Vejamos se os deputados que os representam no Congresso vão deixar que haja uma tal reversão de expectativas de direito. Duvido.
Finalmente o Terceiro Estado é formado pela maior parte do povo brasileiro, englobando uma grande disparidade de pessoas em termos de renda e de perspectivas de aposentadoria. Os que estão em melhor situação são aqueles que têm carteira assinada pelo patrão no regime CLT e que contribuem à Previdência pela alíquota máxima, de 11%. Nos termos da reforma essa alíquota passaria a 11,68%. Mas há os que têm contribuído de maneira intermitente ao INSS pelo fato de terem tido carteira assinada de maneira não contínua, aqueles que contribuem pela alíquota mínima por trabalharem de maneira autônoma, aqueles que não contribuíram porque nunca tiveram carteira assinada ou porque sempre trabalharam fazendo bicos, empreendendo à maneira brasileira, isto é na informalidade, sem pagar impostos, sem comprovar renda. Para não falar dos jovens que ainda não entraram no mercado de trabalho: a estes será negada a solidariedade do sistema de repartição, oferecendo-se no lugar a poupança individual do regime de capitalização. Em suma, o jovem brasileiro, quando tornar-se trabalhador, não poderá contar com um naco do bolo da receita previdenciária corrente ao tempo em que ele se aposentar para financiar seus benefícios. Ele terá que por si só juntar dinheiro em sua conta para arcar com seu ócio, a depender de sua carreira e rendimento profissional ao longo da vida, e o máximo que o governo por enquanto oferece é garantir um salário mínimo.
Prezados leitores, considerando quão amador tem se mostrado o exército de Brancaleone que se instalou no Palácio do Planalto em 2019, o quão seu Bolsonaro está sujeito a chantagens veladas do Judiciário e do Ministério Público por conta dos deslizes do seu filho Flávio, é de esperar que o que seja aprovada seja a idade mínima e o tempo de contribuição para os trabalhadores do setor privado e algo no meio do caminho para os funcionários públicos que não os coloque no saco de gatos esquálidos do INSS. Continuaremos a ter Três Estados, com graus decrescentes de privilégios e crescentes de obrigações. E considerando que o princípio da solidariedade terá sido rompido pela ideia da capitalização, a confiança das pessoas na previdência se esvairá rapidamente. Por que contribuir se sei que estou financiando a aposentadoria dos afortunados que têm direitos adquiridos, mas ninguém financiará a minha no futuro, porque cheguei tarde demais ou por que não pertencia ao estamento correto? Afinal, o trabalho intermitente e o estímulo à terceirização, permitidos pela reforma trabalhista de 2017, torna possível àqueles que deixarem de ser empregados em tempo integral e passarem a trabalhar alguns dias por mês para o empregador ou a abrir empresas prestadoras de serviços optar por não contribuir para o INSS ou contribuir o menos possível. Em suma, o que o Posto Ipiranga anuncia para nós não é uma Nova Previdência para Todos, mas uma Previdência de um lado remendada para permitir o financiamento, por mais alguns anos, a depender do crescimento da economia, dos benefícios daqueles cujo direito é inatacável e de outro mutilada pela introdução do conceito de capitalização que oficializa o salve-se quem puder. Será esse projeto uma maneira de renovar a previdência ou de começar o seu desmonte por um círculo vicioso de menos receitas, menos benefícios, menos expectativas de benefícios, menos receitas? Veremos.