As raízes de apologia eram apo (“retirada”) do logos (caso) que alguém tivesse apresentado a você. Logos (fonte da nossa ‘lógica’ – logia´) é de fato o substantivo mais comum em toda a literatura grega: ‘estimativa, razão, descrição razoável, história, discurso, tese’ dão uma ideia da sua amplitude. Aquela palavra está por trás do comprometimento pelo debate franco e público que estava no cerne da conquista intelectual grega. Na qualidade de político, professor, litigante, doutor, artista, filósofo (e assim por diante) em uma democracia radical, as pessoas esperavam que você apresentasse um logos – uma descrição razoável e inteligível para o público – de suas ações ou ideias e estar aberto para uma resposta similar.
Trecho retirado do artigo “Vamos ouvir o ‘logos’ de Corbyn” do classicista inglês Peter Jones, publicado em 11 de agosto
Do ponto de vista do pensamento causal, o simbolismo é considerado um curto-circuito intelectual. O pensamento procura a conexão entre duas coisas não ao longo das sinuosidades ocultas de seus vínculos causais, mas sim saltando subitamente por cima das conexões de causa. A conexão não é um elo entre causa e efeito, mas entre significado e objetivo. A convicção de que tal elo existe pode surgir sempre que duas coisas possuam uma característica essencial em comum que se refira a alguma coisa de valor geral.
Trecho retirado do livro “O Outono da Idade Média” de Johan Huizinga (1872-1945), historiador holandês e um dos países da moderna história cultural.
Brasão da cidade suíça de Genebra do século XV
Prezados leitores, qual a relação entre uma rosa branca que floresce entre os espinhos e uma mulher virgem? A rosa branca é símbolo da mulher porque as duas compartilham características essenciais: são brancas, puras, belas e ternas. Essa era a associação que se fazia no final da Idade Média entre dois objetos aparentemente não relacionados, mas que o pensamento simbólico então florescente ligava de maneira indissolúvel, tão indissolúvel que essa imagem de rosa associada à figura feminina perdurou por séculos em poemas, em pinturas e em outras obras artísticas. A hóstia consagrada era símbolo de Jesus Cristo e mais, era a própria personificação de Jesus Cristo, pois a concepção filosófica então em voga era a denominada realista ou idealismo platônico, em contraposição ao nominalismo: os nomes que damos às coisas revelam a natureza delas, não são meras convenções: ‘rosa’ não é só um substantivo utilizado para descrever a realidade, ele é a própria realidade, é algo que existe eternamente e apresenta certos predicados. Assim explica Johan Huzinga no livro mencionado acima, um dos clássicos da historiografia ocidental cujo objetivo foi retratar o modo como as pessoas pensavam e sonhavam nos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos.
Ao detalhar o pensamento simbólico na Idade Média, o historiador holandês mostra-nos seu lado positivo e negativo. De um lado, ele permite dar vazão ao sentimento religioso de uma maneira bela e criativa, ligando-o à arte e expressando as aspirações da alma. O fiel cristão ao ver um ostensório no formato do sol radiante, algo que surgiu no século XIV, comovia-se com a beleza do objeto e o adorava como símbolo de Jesus Cristo, cuja luz aquece e ilumina a vida dos pobres fiéis que muitas vezes perdem-se na escuridão do pecado. De outro lado o pensamento simbólico, ao estabelecer relações entre qualquer coisa, acaba tornando a criação de símbolos e alegorias um mero jogo, uma fantasia superficial. Huzinga exemplifica esse exagero citando os exercícios aritméticos que eram feitos: “os doze meses eram os doze apóstolos, as quatro estações, os evangelistas, e o ano inteiro, só pode ser Cristo.” Em suma, o simbolismo era uma manifestação típica da fase de decadência da Idade Média: bela e poética, mas ao mesmo tempo podendo resvalar para a religiosidade supersticiosa, que ao ver significado em tudo, acaba mistificando o mundo natural, tornando o pensamento estéril e infrutífero, pois incapaz de lidar com os fatos de maneira a descobrir sua origem e suas consequências. Não é de admirar que a caça às bruxas tenha ocorrido nos últimos anos daquele período. Da mesma forma que as mulheres podiam ser idolatradas como rosas brancas imaculadas e belas, elas também podiam ser vilipendiadas e associadas a toda sorte de coisas ruins, independentemente de terem de fato contribuído com seus atos para uma má colheita, para uma doença ou para uma guerra. Não importavam as relações causais, importavam as relações simbólicas, como demonstra Huizinga.
Não é por acaso que os espíritos racionalistas do Iluminismo, que apelidaram a Idade Média de Idade das Trevas, têm como germe a Reforma Protestante, que se insurgiu contra as superstições católicas, o culto das relíquias, dos santos, dos objetos religiosos como personificações de Deus, da Virgem Maria, de Jesus Cristo e de todos os personagens da narrativa cristã. Nesse sentido, a Reforma Protestante pavimentou o caminho para a retomada do ideal do discurso lógico, prevalente nas assembleias democráticas das cidades-estados gregas: a palavra usada não para emocionar, elevar o indivíduo aos céus, mas para convencê-lo sobre um determinado rumo a tomar a respeito de um problema concreto qualquer da cidade: seja ir à guerra, construir um novo porto ou condenar ou não alguém ao ostracismo. O desenvolvimento científico e tecnológico no Ocidente a partir do século XVI, baseado no estabelecimento de relações de causa e efeito, é fruto dessa nova perspectiva sobre a vida, e os sistemas parlamentares, de democracia representativa, que aos poucos foram sendo consolidadas nos países mais prósperos da Europa e das Américas, expressaram no plano político o primado da argumentação racional.
Era esse o caminho estabelecido como o mais sensato, e que no Brasil bem ou mal foi adotado aos trancos e barrancos desde a proclamação da República, em 1889, e de maneira mais firme a partir de 1989, com as primeiras eleições diretas para a Presidência da República depois da saída dos militares do poder. Mas eis que no século XXI tivemos o advento das mídias sociais e cujos frutos estamos vendo nesta campanha presidencial. O mais resplandescente deles sem dúvida são as fake news. O horário eleitoral gratuito, em que os candidatos outrora bem ou mal explicavam suas propostas, esteve longe de ser relevante. Tanto assim que o candidato à Presidente pelo PSDB, Geraldo Alckmin, que possui o maior tempo de TV, não conseguiu avançar nas pesquisas de intenção de voto. O ritmo da campanha é ditado pelas mensagens de WhatsApp, com memes e histórias repassadas em cadeia de um eleitor a outro. No momento em que escrevo, o candidato do Partido dos Trabalhadores, Fernando Haddad, alegou em petição apresentada no Tribunal Superior Eleitoral que os partidários de Bolsonaro estão espalhando a notícia por meio de vídeos de que o PT é apoiado pelos guerrilheiros e narcotraficantes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as FARC, e que Haddad criou o kit gay para ensinar homossexualismo às crianças nas escolas. O Partido dos Trabalhadores solicita que esse conteúdo seja removido da internet.
Os petistas têm motivos para querer que esse conteúdo seja banido, porque as fake news têm tido uma eficácia extraordinária, haja vista a disparada de Bolsonaro nas pesquisas, a despeito de ele não ter participado de nenhum debate. Mas para que servem debates se o que conquista votos não é a discussão, mas a construção de símbolos? Tenho certeza que muitas pessoas que recebem e repassam mensagens sobre FARCs e kit gays sabem que aquilo não é verificável na prática, e portanto, foi criado por artistas virtuais, mas é algo que se encaixa em uma narrativa. A narrativa de que o Partido dos Trabalhadores é o partido dos guerrilheiros de esquerda (Dilma Rousseff de fato o foi), dos ateus, dos revolucionários que querem subverter o capitalismo, dos que querem destruir a família tradicional formada pelo pai, pela mãe e pelos filhos. Fernando Haddad transforma-se então em símbolo de tudo o que é ruim, imoral, o bolivarianismo, a Venezuela, a distribuição de renda à força, e Bolsonaro transforma-se naquilo que é bom, a ordem, a segurança, a pátria, a religião, a família. Nesse sentido, não importa se as fake news são mentiras deslavadas, ou meias-verdades. O que importa é que elas amedrontam e maravilham ao mesmo tempo, dando vazão aos sentimentos de amor e ódio que cada um dos eleitores/usuários de smartphones nutre pelos candidatos.
E assim é que no domingo 7 de outubro, embalados pelos nossos compartilhamentos virtuais, pelos nossos likes e dislikes, escolheremos dois símbolos, não com base no que de fato fizeram para o Brasil, ou possam fazer concretamente por meio da execução de seus planos de governo (que aliás ninguém sabe quais são e sobre os quais ninguém têm interesse). Pobre democracia brasileira, sem logos, só na base dos símbolos, da mitologia, das fantasias, dos bodes expiatórios, temo que ela tenha vida cada vez mais atribulada nessa era das fake news.