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É proibido proibir: pior que tá não fica

Posted by on 27/09/2018

O fato é que as crianças infectadas com o vírus da “afluência” vêm de famílias da elite, e raramente elas arcam com as consequências do comportamento imoral, ilegal ou desonesto. […] Elas sempre foram capazes de cometer seus “excessos da juventude” e raramente ser prejudicadas por eles. O que quero dizer é que esse é o tipo de comportamento que nos traz ao ponto em que estamos hoje com uma sociedade corrupta em todos os níveis, que degrada nossa humanidade de todas as maneiras, a política brutal que não significa nada para ninguém exceto para aqueles que saem-se vitoriosos, e uma civilização – caso queria chamá-la desse nome – que está se despedaçando.

Trecho retirado do artigo “Bêbados, promíscuos e com pais ausentes? Isso é tudo o que resta afinal da liderança dos Estados Unidos?” publicado em 25 de setembro por Cynthia McKinney, que foi seis vezes deputado no Congresso Americano representando o Estado da Geórgia.

Controle-se

Ajude os amigos

Controle a raiva

Não fale mal de ninguém

Seja imparcial

Ouça todo mundo

Teste o caráter

Alguns dos 147 aforismos de Delfos atribuídos aos Sete Sábios da Grécia

    Prezados leitores, no artigo mencionado acima Cynthia McKinney tem como alvo Brett Kavanaugh, indicado pelo Presidente Donald Trump para uma vaga na Suprema Corte dos Estados Unidos, e Christine Blasey Ford, que o acusa de ter tentado forçá-la a fazer sexo quando ela tinha 15 e ele tinha 17 em uma festa onde todos, inclusive ela (como ela própria admitiu parta justificar certas lacunas em sua versão do que ocorreu), estavam bêbados. Para os defensores de Kavanaugh, a história é totalmente falsa, uma invenção dos democratas a respeito de um juiz cuja vida já tinha sido escrutinada pelo FBI, que não havia encontrado nada de desabonador. O propósito é tentar barrar de maneira desesperada e de última hora a confirmação de Kavanaugh. Para os defensores de Christine, ela fala uma verdade traumática, que veio à tona pela primeira vez em 2012 quando fazia terapia de casal com o marido.

    Para Cynthia, não importa o claro uso político que esse caso de violência sexual está tendo, evidenciado pelo fato de que Ford só prestou depoimento publicamente agora, às vésperas de o juiz ser sabatinado pelo Senado americano. O ponto importante é o que ele revela sobre a qualidade dos líderes que os Estados Unidos estão formando. Se os jovens americanos crescem participando de festas regadas a bebida, onde as oportunidades para o sexo são infinitas, mesmo porque os pais os deixam livres e soltos e ainda lhes dão cartão de crédito para financiar a diversão, como esperar que se transformem em adultos responsáveis? Se nenhum limite lhes é imposto desde que são jovens, se tudo o que fazem de errado sai barato, como esperar que saibam cumprir suas obrigações quando iniciarem uma carreira profissional qualquer? A corrupção, o sectarismo que ela observa na vida pública do seu país é o resultado agregado do comportamento desses indivíduos que podem tudo, que têm suas necessidades e desejos como única referência, e não têm que lidar com as consequências dos seus atos, porque o dinheiro esconde tudo debaixo do pano. De acordo com Cynthia, que pasmem, escreveu sua tese de doutorado sobre a liderança transformativa de Hugo Chavez, uma sociedade sem líderes dignos do nome é um sintoma de colapso da civilização, que fica sem compasso moral.

    Minhas humildes observações ao meu redor, no lado de baixo do Equador, levam-me a compartilhar da opinião de Cynthia. É só passar em uma noite qualquer na rua Maria Antônia, no centro de São Paulo, para constatar que nossa juventude dourada, que está oficialmente matriculada na Universidade Mackenzie, faz seu aprendizado nas calçadas, bebendo cerveja e conversando. Em uma sexta-feira em que eu voltava do teatro havia tantos estudantes cultuando o Deus Baco que para avançar eu precisei andar pela rua. Eu mesma passei pelos bancos escolares na Universidade de São Paulo uma segunda vez de 2009 a 2013, e pude testemunhar que o empenho dos alunos era em sua maioria o de jogar pebolim no Centro Acadêmico e fazer outras coisas indignas de menção neste espaço, incluindo o esforço de obter o diploma com o menor dispêndio de energia intelectual possível, na base da cola, da compra de trabalhos feitos por outros, do uso de smartphones em pleno momento da prova.

    Corro o risco de ser acusada de puritana, evangélica, moralista, mas considero que o grande mote da década de 60, do é proibido proibir, teve um efeito nefasto em todos os países que o adotaram, em menor ou maior grau, e neste rol incluo os Estados Unidos e o Brasil, em que houve manifestações estudantis nesse sentido, em que pese as diferenças de contexto cultural e econômico. Se é verdade que houve causas nobres naquela época, a luta contra a Guerra do Vietnã lá e a luta contra a ditadura aqui, o legado que deixou, de total esfacelamento da autoridade, teve e terá consequências terríveis. Na Universidade de São Paulo, cujos professores são todos filhos intelectuais de Daniel Cohn-Bendit, o líder estudantil francês de maio de 1968, presume-se que os alunos sejam adultos e livres, que não precisam de orientação nem supervisão. Se fazem algo teoricamente errado raramente são punidos, porque os esclarecidos mestres presumem que punir é algo inerentemente autoritário, ultrapassado num mundo em que cada um de nós pode e deve realizar suas próprias escolhas. Se o garoto ou garota de 17 ou 18 anos escolhe não se preparar como deve para a avaliação e usar de subterfúgios para conseguir nota, o problema é dele ou dela, que tem autonomia para escolher seu caminho, não cabendo ao professor, que é um mero facilitador do aprendizado, interferir.

    Alguns poderão argumentar que essa postura liberalizante na escola e na universidade é a correta, porque cabe à família fornecer as orientações suficientes para que o jovem saiba comportar-se fora do lar. No entanto, como denuncia Cynthia em seu artigo, pais que deixam os filhos ir a festas para divertir-se sem supervisão de adultos não são a bússola moral dos pimpolhos, são meros facilitadores de consumo. E nesse ponto vem os psicólogos, os pedagogos, os terapeutas para quem a solução é o diálogo franco e transparente. Mais uma manifestação do “é proibido proibir”: presumir que uma criança ou adolescente só irá fazer o que os pais recomendam porque elas serão convencidas com argumentos é abdicar da autoridade, é estabelecer uma relação entre iguais. Será que todas as escolhas sobre o certo e o errado têm um fundamento universalmente válido? Será que todo tipo de comportamento pode ser analisado objetivamente em termos de riscos e benefícios?

    É fácil convencer com argumentos um filho sobre os malefícios de uma overdose de cocaína, mas como convencê-lo quando o prazer proporcionado pela droga é muito maior do que o mal que ela causa, se ela não for ingerida em quantidade exagerada? Como exercer a autoridade paterna ou materna só na base dos argumentos baseados em fatos e informações? Não será mais fácil pressupor que o sopesamento dos prós e contras de um determinado comportamento tem um grau de arbitrariedade, porque fruto de uma valoração subjetiva e cultural? Optando pela segunda via os pais podem proibir o uso de qualquer substância química dizendo pura e simplesmente: você não vai beber ou cheirar ou fumar porque eu não quero isso para você, e não quero isso para você porque de acordo com minha concepção religiosa ou moral isso é feio, degradante. Ponto final.

    Muito arbitrário certamente, muito preconceito nesse exercício unilateral de autoridade, não é mesmo? Quem é você papai ou mamãe para estabelecer o que é feio e que é bonito, o que é edificante e o que é degradante? Afinal tudo depende do ponto de vista, da ideologia, da classe social, não podemos pretender chegar em denominadores comuns absolutos, que desde o movimento filosófico do Iluminismo no século XVIII vem sendo desacreditados. E assim chegamos ao ponto em que estamos nós, que levamos o “é proibido proibir” às ultimas consequências: a autoridade se desmanchou por completo, não há modelo de conduta, e cada indivíduo é a medida de todas as coisas.  E por isso cada um de nós se acha no direito de falar o que quer, ouvir só o que lhe é interessante, fazer o que é bom para nós mesmos.

    O fenômeno recentíssimo da violência nas mídias sociais é manifestação desse nosso olhar para o próprio umbigo, da nossa certeza de que temos superioridade moral sobre aquele que é diferente meramente pelo fato de que nós individualmente nos bastamos. E se cada um tem o direito de ter sua própria verdade, no fim das contas ninguém tem verdade nenhuma, ninguém pode arvorar-se como padrão de alguma coisa. Não é de se espantar que pelo andar da carruagem nossa eleição presidencial de 2018 vai resolver-se num “voto Tiririca, pior que tá não fica”: nenhum eleitor de Jair Bolsonaro ou Fernando Haddad vota pelas qualidades manifestas de liderança de cada um deles, pois pressupomos que toda autoridade é arbitrária, que todo líder é hipócrita e corrupto. Votamos num ou noutro por uma idiossincrasia qualquer, por simpatizar com uma característica de cada um deles, irredutível, que EU escolhi como fundamental, e com a qual ninguém tem nada que interferir. E assim nossa tenra democracia, fruto da nossa derrubada dos milicos autoritários, avança na base dos ataques virtuais ou físicos.

    Prezados leitores, neste universo Tiririca meu consolo como antiquada moralista que sou é ler o oráculo de Delfos. Garanto-lhes que se seguíssemos aqueles conselhos, ou ao menos se os tomássemos como parâmetros, estaríamos mantendo a civilização ocidental, ao invés de destruí-la pouco a pouco.

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