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Versalhes, nunca mais

Posted by on 03/09/2018

A história tem a realidade atroz de um pesadelo; a grandeza do homem consiste em fazer obras belas e permanentes com s substancial real desse pesadelo. Ou em outras palavras: transfigurar o pesadelo em visão, libertar-nos, nem que seja por um instante, da realidade disforme por meio da criação.

Trecho retirado do ensaio “Conquista e Colônia” escrito pelo escritor mexicano Octavio Paz (1914-1998)

D. João, com D. Pedro, d. Miguel e o sobrinho de 22 anos, d. Pedro Carlos, foi morar em uma propriedade rural, a Quinta da Boa Vista, a seis quilômetros da cidade. A casa lhe fora cedida, em troca de dinheiro, postos e condecorações, por Elias Antônio Lopes, nome aportuguesado do comerciante sírio-libanês Elie Antun Lubbus, traficante de escravos. […] O nome do local, Quinta da Boa Vista, fazia jus ao cenário que se descortinava ali. À frente da residência, era possível avistar o mar; em uma de suas laterais, o morro do Corcovado e a floresta da Tijuca dominam a paisagem até os dias de hoje.  

Trecho retirado do livro D. Pedro, A história não contada, de Paulo Rezzutti

 

Uma das páginas do guia sobre A Villa Romana del Casale inscrita no Patrimônio da Unesco em 1997

    Prezados leitores, desculpem se pareço pedante, mas viajo para conhecer museus. Por enquanto a área do meu interesse é a Europa e lá em qualquer museu que eu visitei uma presença constante é a dos piccolinos com as respectivas professoras. Em Ravenna, Itália, no Mausoléu de Galla Placidia, filha do imperador Teodósio, eles estavam lá. Fazem muito barulho, tiram fotos, muitos nem prestam atenção às maravilhas que estão vendo, no caso os mosaicos do quinto século depois de Cristo, e nem ao que a professora tenta explicar a respeito do contexto histórico. De qualquer forma, um ou outro aluno consegue responder às perguntas da tis, e eles sempre tem que preencher algum questionário, ou anotar alguma coisa. Nas igrejas, os funcionários invariavelmente precisam pedir que os piccolinos fiquem quietos, para não atrapalhar os adultos que estão lá por sua livre e espontânea vontade de ser turistas. Em certos museus, os estudantes sentam-se no chão e enquanto ouvem as explicações  desenham copiando alguma obra de arte.

    Mas a Itália e seu fabuloso patrimônio artístico não atraem só os jovens nativos. Em Piazza Armerina, uma cidade na Sicília que abriga a Villa Romana del Casale, em pleno fevereiro chuvoso e frio, estávamos eu e uma turma de estudantes alemães, estes não muito piccolinos, pelo contrário, deviam ser alunos do ensino médio. Andavam pelas passarelas construídas como andaimes do alto dos quais veem-se mosaicos de uma residência que se acredita tenha pertencido a algum senador ou governador romano, e alguns estudiosos acreditam até que ela tenha sido refúgio de verão de algum imperador, considerando a sofisticação da decoração. Gastei uma pequena fortuna, indo de ônibus à cidade, pegando um táxi à Vila e pagando o ingresso que foi de 18 euros, o preço padrão para atrações que são patrimônio histórico da humanidade.

    Sempre quando olho esses grupos escolares nos museus, penso que aqueles meninos e meninas não dão o devido valor, porque não têm consciência do privilégio de que desfrutam. Eu preciso cruzar o Atlântico, economizar em reais para comprar moeda forte, enquanto eles, que displicentemente olham os celulares, conversam com os amigos e riem do que veem, podem pegar um ônibus a qualquer época do ano e dar uma passadinha lá para ver as moçoilas de biquíni jogando tênis  na Vila ou Jesus Cristo sendo batizado nas águas translúcidas de um riacho feito de pequeninos ladrilhos coloridos no Mausoléu. E no entanto, duvido que o façam. Pelo menos a maioria certamente não. Dito isso, quero eu dizer que esses passeios por monumentos históricos, repositórios de quadros e esculturas e construções de grande valor artístico são uma perda de tempo das escolas? Certamente que não. Essa obrigação dos educadores de colocar as crianças em contato com o patrimônio do seu país e de sua civilização deve ser cumprida, mesmo que esses piccolinos, ao chegarem à vida adulta, adquiram uma atitude blasée em relação a museus e nunca mais ponham os pés em um deles, por estarem fartos de tanta velharia. A Itália pode ter atualmente um índice de desemprego de 37% entre os mais jovens e uma dívida pública de 132% do PIB, mas qualquer italiano sabe da beleza que foi produzida na península desde os tempos em que os gregos colonizaram a parte meridional da bota.

    Agora corto o parêntese europeu e exercito o meu pedantismo aqui no Brasil. Ao contrário de muitos que derramam lágrimas politicamente corretas pelo Museu Nacional, destruído ontem pelo fogo da incompetência, mas que nunca nem tinham ouvido falar dele, eu visitei a Quinta da Boa Vista, a Versalhes brasileira. Não é exagero chamá-la assim, como fez Mariana Amaral no Twitter, visto que a família real brasileira lá fixou residência, para fugir da insalubridade da cidade do Rio de Janeiro.  Para quem não tem carro e não é nativo da Cidade Maravilhosa, foi um passeio aventuroso, para dizer o mínimo. É preciso pegar o trem, descer em uma estação já no subúrbio, e quando entrei no parque, tive a impressão de estar no Parque da Luz em São Paulo, que é povoado de desocupados e bolivianos que vão lá desfrutar de lazer com as respectivas famílias, porque sai de graça.

    A Quinta da Boa Vista, ao menos quando estive lá, há cinco anos, era um lugar de passeio de pretos e pobres. Talvez por não estar na Zona Sul, o museu tinha tanta dificuldade de captar recursos e era tão pouco atraente. Lembro que o prédio era velho à maneira tropical, não à maneira europeia (aqui solto mais um pedantismo): prédio em que se vê claramente que o único dinheiro existente para manutenção é para pagar faxineiras e faxineiros para passarem pano no chão e não deixarem que os piolhos, carrapatos e cupins tomem conta do local. As coleções eram dispostas em vitrines com parcas explicações e exígua luminosidade, e as tábuas de madeira lembravam-me as lojas de balcão da cidade natal da minha mãe, Dourado, onde eu passava as férias na década de 80. Para falar a verdade, nada do que vi ficou na minha cabeça, era apenas um monte de objetos dispostos sem muita organização, e no fim da tarde depois do fechamento do museu tive o cuidado de caminhar rápido para a estação de trem e não correr o risco de estar lá em São Cristóvão ao anoitecer.

    Em suma, o velho padrão da segregação e da estratificação se repete. A classe média não frequenta a periferia e portanto, não vai à Quinta da Boa Vista porque apesar de ali estar o museu mais antigo do Brasil, é um local frequentado pelas classes baixas. Não importa a importância histórica que ele tenha, pois para os brasileiros que não são pretos e nem pobres,  mais importante do que a história que poderia nos unir em torno de um legado comum, é estabelecer com segurança seu lugar sob o céu de brigadeiro tropical, longe da esqualidez de um parque do povo como a Quinta da Boa Vista.

    Prezados leitores, não nos iludamos: haverá muitas manchetes nos jornais e revistas nos próximos dias sobre o finado Museu Nacional, planos serão elaborados e divulgados para revitalizar os museus brasileiros, os presidenciáveis – que tenho certeza nunca passaram perto da Quinta da Boa Vista para desfrutar nem mesmo dos jardins – farão menção da tragédia em seus programas eleitorais. Depois de algum tempo voltaremos a nossa realidade brasileira: diferentemente dos adultos europeus que, forçados ou não, adquirem consciência da sua herança cultural, continuaremos alegremente ignorantes dessas coisas empoeiradas, insossas e chatas que colocam em prédios caindo aos pedaços a que chamam de museus. Viva nossa modernidade, porque somos um país novo, livre de cacarecos.

    Este texto foi uma tentativa tosca de superar minha tristeza em ver o prédio onde nasceu a rainha de Portugal D. Maria II e nosso segundo imperador D. Pedro II, arder em chamas. Versalhes, nunca mais: RIP.

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