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Pretos e pobres, brancos e ricos

Posted by on 05/03/2018

O ensino fundamental no Brasil hoje pode ser considerado universal, com 99,2% das crianças de 6 a 14 anos frequentando a escola, o que representa 26,5 milhões de estudantes, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: Educação (Pnad Contínua), divulgada no final de dezembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). […] Sem deixar de reconhecer a importância desses avanços, os números indicam que as desigualdades que antes se manifestavam no acesso à escola pública, agora se revelam dentro dela, com crescentes diferenças nos níveis de aprendizagem, que podem chegar ao equivalente a três anos de escolarização entre crianças da mesma idade.

Trecho retirado do artigo “Expansão Desigual” publicado na revista Pesquisa FAPESP de fevereiro de 2018

Estamos no mesmo barco. Ou nos unimos para resolver isso ou vamos ficar reclamando eternamente. […] Não há processo de pacificação calçado na expressão militar do poder. É só uma face da solução. Quando uma ocupação de restringe à atuação militar, não resolve as causas do problema, mas os efeitos. As causas serão resolvidas nos planos econômico, social e político.

Trecho da entrevista do novo secretário de Segurança do Rio de Janeiro, Richard Fernandez Nunes, publicada no jornal O Globo de 4 de março.

Escola na Periferia de São Paulo, foto publicada na revista Pesquisa FAPESP de fevereiro de 2018

    Prezados leitores, sou uma viúva da Revista de História da Biblioteca Nacional. Ela morreu em 2017, ceifada pela crise na Petrobrás, sua maior patrocinadora. Comprei todos os exemplares e os tenho guardados, não sei para quê, provavelmente deixarei minha coleção para alguma instituição. É sempre uma lástima que periódicos que se proponham a discutir questões de fundo, que fujam ao burburinho cotidiano, desapareçam sem deixar rastros. Isso mostra que não há um número suficientemente grande de brasileiros cuja curiosidade intelectual vá além do último grande caso de corrupção, da última prisão de algum peixe graúdo pela Polícia Federal, da última façanha do PCC. Continuamos comprando revistas que tratam dos escândalos diários, que aliás não faltam no nosso país, mas condenamos ao silêncio e ao ostracismo aqueles que se propõem a tratar de problemas que são menos dramáticos do que uma troca de tiros em uma favela do Rio ou do último bate-boca entre ministros do STF.

    Uma publicação que continua em pé há quase 20 anos, desde outubro de 1999, é a Pesquisa Fapesp, patrocinada pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia.  Entrei em contato com ela por acaso, há alguns meses, e seus artigos sempre vão além da mera informação, lançando luz sobre algum aspecto da realidade brasileira que tem sido estudado na academia. Sim, temos pesquisadores em nossas universidades que se debruçam sobre os problemas do país baseando-se em tabulações de números, em estatísticas. Se os economistas e marqueteiros que elaboram o programa de governo dos candidatos a presidente  fundamentassem suas ideais geniais menos em pesquisas de opinião e mais em levantamentos científicos, como aqueles abordados na Pesquisa FAPESP, a qualidade dos debates presidenciais subiria do nível de luta no famoso ringue octogonal da UFC para um nível um pouco acima, de discussão acerca de fatos constatados empiricamente.

    Conforme citado acima, o último número da revista faz um apanhado geral dos resultados da análise de “edições da Prova Brasil entre 2005 e 2013, que envolveram cerca de 23 milhões de alunos e 70 mil escolas e todos os 5.570 municípios brasileiros”. O resumo da ópera, cujo nome oficial é “Desigualdades educacionais no ensino fundamental de 2005 a 2013: Hiato entre grupos sociais”, é o seguinte. A democratização do ensino fundamental no Brasil acabou reforçando nossa centenária desigualdade: as diferenças entre o desempenho de brancos e ricos e pretos e pobres aumentou, mesmo que os pretos e pobres consigam agora frequentar a escola. O estudo mostra que os brancos e ricos (comparativamente falando, claro) conseguem perpetuar seus privilégios por vias tortuosas, mesmo todos estando no mesmo barco do sistema público. Quando não fogem da escola gratuita para reforçar seu status de usuários de serviços particulares, eles acabam enclausurando-se nas unidades localizadas em regiões centrais, em que os professores são melhores e mais assíduos. Aos pretos e pobres reservam-se as escolas periféricas, as quais os bons profissionais da educação não querem frequentar por medo da violência e pelo nível dos alunos.  Além disso, os pretos e pobre vão à escola em busca de outras coisas além da educação: vão atrás de comida e de assistência social, o que acaba tirando o foco da atividade principal que deveria ser desenvolvida. Pronto, está criado o círculo vicioso das áreas violentas ou degradadas, escolas de baixa qualidade, alunos mal preparados, falta de qualificação profissional, desemprego ou empregos de baixo nível, pobreza.

    Ter em mente o quão a sociedade brasileira é segregada de inúmeras maneiras é importante para os formuladores de políticas públicas. Para o sucesso da intervenção militar no Rio seria fundamental. O senhor Richard Fernandez Nunes, ao propor uma abordagem digamos multidisciplinar ao problema da violência na cidade maravilhosa diz algo socialmente correto: todos estamos no mesmo barco. O que ele quer dizer com isso? Que ricos e pobres sofrem igualmente com o clima de conflagração? Não se pode negar que a guerra civil não declarada afeta a vida de todos os cariocas, mas há uma diferença abissal entre uns e outros: entre o morador da favela, cujos filhos, crescendo em um meio violento, têm acesso a uma educação de pouca qualidade que lhes dificulta vencer o ciclo da pobreza e até a resistir ao canto da sereia do tráfico de drogas, e o morador da beira-mar, cujos filhos não têm que se rastejar no chão da escola para se proteger dos tiros e por isso têm mais possibilidade de um desempenho escolar melhor.

    Como essa discrepância está sendo levada em conta pelo ilustre general ao executar os planos de enfrentamento da violência? Será que ocupar militarmente as favelas não causará mais segregação ainda, considerando o estado de permanente alerta em que os moradores viverão? Como os militares no calor da operação distinguirão entre os mocinhos e os bandidos nos “guetos”? Será que na prática, em vistas das restrições orçamentárias enfrentadas pelo país, o objetivo acabe sendo simplesmente estabelecer um cordão de isolamento para que a beira-mar fique em paz por algum tempo? Será que o blábláblá sobre investimentos sociais é só para dar um verniz de respeitabilidade e profundidade a uma iniciativa que é mero factoide para consumo dos eleitores sedentos de lei e ordem?

    Prezados leitores, a Itália acaba de dar 32% de votos para o parlamento ao partido de um comediante, Beppe Grillo, o Movimento das Cinco Estrelas, cujo mote original era que se fodam todos, na tradução para o português. No início eles eram contra a União Europeia e a favor da saída do Reino Unido, agora já se mostram mais tolerantes. Em suma, parece que o importante para os eleitores italianos não foi o que eles tinham a propor, mas simplesmente votar em protesto contra tudo o que está aí. Espero que em nossas eleições de outubro não cheguemos a esse ponto de niilismo, mas para isso seria preciso que fizéssemos um esforço para conhecer nossos problemas para além das nossas ideias pré-concebidas e o furor midiático cotidiano a que somos submetidos. Difícil tarefa. Enquanto isso os pretos e pobres e os brancos e ricos continuam em seus territórios respectivos.

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