Tomemos como exemplo o famoso julgamento do Tribunal de Nuremberg, após a Segunda Guerra Mundial. Um dos dilemas enfrentados pelos juízes estava no fato de que não havia normas superiores de Direito Internacional Penal que, à época, tipificassem o genocídio como crime, sendo, no entanto, aceito o princípio nullum poena sine lege (não há crime nem pena sem prévia lei). Como então responsabilizar os criminosos nazistas? […] O Tribunal definiu o genocídio como crime contra a humanidade e, para escapar ao princípio nullum crimen, invoca-se a existência de certas exigências fundamentais de vida na sociedade internacional que implicariam a responsabilidade penal individual dos governantes e dos que executam suas determinações.
Trecho retirado do livro “Introdução ao Estudo do Direito” de Tercio Sampaio Ferraz Jr.
Levantamento mostra que 14 dos 17 integrantes do CNJ [órgão responsável pela fiscalização da própria magistratura e o aperfeiçoamento do sistema judiciário brasileiro] receberam em 2017 rendimento líquido acima do teto constitucional, de R$ 33,7 mil; eles dizem que pagamentos têm amparo legal
Trecho do artigo “Maioria dos integrantes do CNJ recebeu acima do teto” publicado no jornal O Estado de São Paulo em 18 de fevereiro
Dona Cármen Lúcia, permita-se apresentar-me. Sou Maria Elisa Bittencourt, meto-me a escrever sobre o que me dá na telha se meu cérebro e meu tempo dão-me a oportunidade e dirijo-me à senhora nesta semana na certeza de que esta carta não chegará aos seus olhos na tela do seu laptop. Independentemente disso, escolhi a senhora como destinatária porque quando iniciou seu mandato como presidente do Supremo Tribunal Federal em 12 de setembro de 2016 muita confiança foi depositada na sua seriedade, na sua sisudez e na sua condição de doutora mulher ou mulher doutora. Os bem-pensantes do Brasil acharam que a senhora seria bússola moral da nação, quando estávamos ainda fazendo o rescaldo do impeachment de Dona Dilma Rousseff em 31 de agosto daquele ano.
Desculpe Dona Cármen, mas de mulher para mulher, passado um pouco mais de um ano e meio, a impressão que a senhora deixou em mim até o momento é que lhe falta pulso para exercer a presidência e administrar a fogueira das vaidades que é o Supremo Tribunal Federal, uma corte em que cada Ministro decide individualmente como quer e quando quer. Nas cruas palavras de Luís Roberto Barroso “O Supremo está virando um Tribunal de cada um por si.” Os números mostram isso. Em 2016 o STF tomou 14.529 decisões colegiadas e 70.091 decisões monocráticas, isto é, individuais (números publicados na Revista da CAASP na edição de maio de 2017). A senhora não fez nada para mudar esse estado de coisas, como demonstram as brigas de galo entre Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, que trocaram insultos em 26 de outubro de 2017.
Caso a senhora tenha esquecido desse tragicômico episódio, faço questão de lembrá-la: Mendes ironizou o fato de Barroso ter tomado o Rio de Janeiro como exemplo de administração e de ter soltado José Dirceu. Barroso, encrespado com os ataques ao seu Estado natal, acusou Gilmar de mentiroso e de leniência com os crimes de colarinho branco. Dona Cármen, a senhora pediu com muita fineza e educação que os dois parassem de se digladiar no Coliseu de Brasília, mas a senhora não pode negar que eles a ignoraram solertemente, talvez porque sua voz não seja tonitruante como a de Gilmar ou porque a senhora não consiga levantá-la nunca, quiçá resquício do seu tempo de interna no Colégio Sacre-Coeur. Talvez naquele momento em que os níveis de testosterona estavam altos no plenário a senhora não pudesse ter feito nada, mas com certeza deveria ter chamado os dois excelentíssimos ministros depois de encerrada a sessão para passar-lhes uma descompostura. Se o fez nunca saberemos, mas sabemos que o efeito foi nulo. Em 19 de dezembro, eles voltaram a trocar farpas dessa vez por causa do trabalho de Rodrigo Janot à frente da Procuradoria-Geral da República, Barroso defendendo-o e Mendes o atacando. Em suma, um dia o Ministro Marco Aurélio disse que o STF é formado por 11 ilhas. A senhora ainda não fez nada de relevante para mudar essa situação, que parece piorar a cada dia, levando ao descrédito do órgão máximo do Judiciário brasileiro.
Dona Cármen, ainda há tempo de a senhora fazer jus às esperanças que foram depositadas na sua pessoa. A chance será em março quando o plenário deverá discutir, caso a senhor a marque a data do julgamento, as liminares (sempre elas!) dadas pelo Ministro Luiz Fux em setembro de 2014 assegurando o direito ao auxílio-moradia a todos os juízes em atividade no Brasil. Sabemos da situação atual: o teto constitucional é desrespeitado por gambiarras legais que levam os magistrados a receber verbas indenizatórias como auxílio-moradia, auxílio-alimentação, ajuda de custo, antecipação de 13º e outros benefícios. Desse modo, há juízes como o Sr. Aloysio Corrêa da Veiga, cujo subsídio base de 32.075 reais depois dos penduricalhos vira um gordo rendimento líquido de 110.332 por mês, pagos a um indivíduo que goza de duas férias por ano e que não paga imposto de renda sobre o que excede o básico, pois indenização não é considerada renda.
Dona Cármen, sou formada em Direito como a senhora e sei que todas essas verbas adicionais nos termos do artigo 4º da Emenda Constitucional nº 47 de 2005, são tecnicamente consideradas de natureza indenizatória, e portanto, diferentes das “vantagens pessoais de qualquer natureza” que o inciso XI, do artigo 37 da Constituição Federal inclui no limite do teto constitucional. Mas convenhamos: como a senhora quer que o povo brasileiro entenda essas filigranas jurídicas? Porque na prática, apesar de haver o “amparo legal” o resultado é o seguinte: colocou-se na Carta Magna um dispositivo para evitar os super-salários e os magistrados conseguiram passar ao largo dessa limitação pleiteando e conquistando com base na Constituição auxílio-moradia mesmo quando eles não têm que sair da cidade onde moram para trabalhar.
Aliás, antes de continuar, peço desculpas pelo termo um tanto informal demais que usei, de “gambiarra”, mas é sabido com bases em entrevistas de membros de associações de juízes publicadas nos grandes jornais que essas alterações na Constituição foram fruto de um toma lá dá cá em que os magistrados não conseguiram reajuste salarial, mas conseguiram incrementos nos subsídios de maneira enviesada. Em bom português, foi na base do jeitinho brasileiro, o mesmo empregado pelo ex-presidente Luiz Ignácio Lula da Silva para conseguir financiar as campanhas eleitorais do PT. A senhora pode achar que estou comparando bananas com maçãs, mas quando os petistas justificam o comportamento de Lula aceitando jabaculês (desculpe novamente pela minha liberalidade linguística) de empreiteiras alegando que se ele não fizesse assim não teria dinheiro para disputar eleições e não poderia participar do jogo democrático, a mim me parece estar ouvindo os juízes dizerem que sem esses estratagemas (a palavra é melhor agora, não?) eles ficariam com salários defasados por anos e não conseguiriam exercer suas funções de maneira digna.
Enfim, Dona Cármen, mesmo que a senhora não concorde que os magistrados estejam no mesmo nível dos réus da Lava-Jato, a senhora há de concordar que o efeito sobre o povo é o mesmo: uma constatação de que cada grupo aqui no Brasil cuida dos seus próprios interesses, com o agravante de que os juízes fazem tudo dentro da lei, ao contrário do Lula, que cometeu alguns crimes tipificados no Código Penal. Agravante porque se é feito dentro da lei fica difícil acionar o Ministério Público Federal e a Polícia Federal para resolver a situação, como foi feito com alguns políticos, empresários e funcionários públicos de carreira. Permita-me então lhe sugerir uma solução jurídica que puxei da lembrança das minhas aulas de Filosofia do Direito. Os nazistas que torturaram, mataram e exterminaram judeus, ciganos e homossexuais foram condenados em Nuremberg não porque desobedeceram a lei em vigor no país, mas porque violaram princípios universais de direitos humanos que mesmo que não estejam escritos em uma Constituição, são válidos em qualquer tempo. Essa é minha humilde contribuição Dona Cármen que ofereço sem ter sido solicitada a fazê-lo: vote contra os penduricalhos indenizatórios por eles serem imorais em um país em que se pedem sacrifícios à população ameaçando o apocalipse da falta de dinheiro para pagar aposentadorias no futuro, enquanto há dinheiro de sobra para pagar 100.000 reais por mês a um juiz.
Sem mais para o momento despeço-me, com a tênue esperança de que a senhora não será mais uma Marina Silva que depois de fulgurante desempenho nas eleições presidenciais despontou para o anonimato.