Basta para a configuração [do crime de corrupção passiva] que os pagamentos sejam realizadas em razão do cargo ainda que em troca de atos de ofício indeterminados, a serem praticados assim que as oportunidades apareçam. Citando Direito Comparado, “é suficiente que o agente público entenda que dele ou dela era esperado que exercitasse alguma influência em favor do pagador assim que as oportunidades surgissem”. […] Tal compreensão é essencial em casos de macrocorrupção envolvendo elevadas autoridades públicas, especialmente quando o crime de corrupção envolve não um ato isolado no tempo e espaço, mas uma relação duradoura, o que é o caso quando o pagamento de vantagem indevida é tratado como uma “regra de mercado” ou uma “obrigação consentida” ou envolve uma “conta corrente informal de propinas” entre um grupo empresarial e agentes públicos.
Trecho da sentença do juiz federal Sérgio Fernando Moro, prolatada em 12 de julho de 2017, que condenou o ex-presidente Lula a nove anos e seis meses de reclusão, ao pagamento de reparação por danos de 16 milhões de reais e ordenou o confisco do apartamento tríplex no Guarujá
Prezados leitores, quem há de acusar-nos de sermos uma república das bananas, onde impera a lei do caudilho de plantão? Um país em que o juiz de direito redige uma sentença de 216 páginas, em que inocenta o réu em parte e o condena em parte é certamente um Estado de Direito. Independentemente da preferência de cada cidadão brasileiro, preferência essa estabelecida a despeito de o detrator ou o defensor do fundador do Partido dos Trabalhadores ter lido ou não o cartapácio produzido pelo juiz de Curitiba, deve ser motivo de orgulho para nós que o julgador realizou seu trabalho com esmero.
Esse esmero revela-se no modo como teceu seus argumentos com base em vários depoimentos e no cruzamento das diferentes versões, na investigação de como foi realizada a reforma do apartamento no Guarujá, e de como ele foi adquirido pelo casal Lula. Em suma, as conclusões de Moro são robustas, baseadas na instrução de um processo que ele acompanhou do início ao fim, o que permitiu que a delação premiada fosse apenas uma das peças do quebra-cabeças e não a coluna-mestra. O santo guerreiro de Curitiba respaldou-se em um leque variado de provas documentais (notas fiscais, registros de imóveis) e orais. É reconfortante saber que ele agiu como juiz, rebatendo os pontos da defesa, ponderando as provas, o que o levou a inocentar o ex-presidente da acusação de corrupção e lavagem de dinheiro relativamente ao armazenamento do acervo presidencial custeado pela empreiteira OAS. e que teve o bom senso de não decretar a prisão preventiva de Lula, considerando o clamor que isso causaria.
De fato, Sérgio Moro parece agora menos açodado do que quando revelou o conteúdo dos telefonemas entre Dilma Rousseff e o ex-presidente, parece ter aprendido com seus erros de então e não está dando munição aos seus inimigos. Isso revela um amadurecimento da parte dele, que parecia à época em que deu combustível para o impeachment de Dilma Rousseff deslumbrado com a atenção midiática sobre a sua pessoa e extrapolou suas funções jurídicas, tecendo opiniões sobre o caso em suas mãos no Facebook, arvorando-se em defensor da democracia brasileira contra a corrupção. Esperemos que Sérgio Moro continue nesta trilha menos Ilha de Caras e mais Avenida Anita Garibaldi, 888, 2º andar, sede da 13ª Vara Federal de Curitiba.
Por outro lado, a condenação de Lula por crime de corrupção com base em uma relação continuada de pagamentos de grupos empresariais a agentes públicos, e não em determinado ato de favorecimento do corruptor pelo corrompido, conforme a citação que abre este artigo, coloca certas questões espinhosas para nós brasileiros e nosso sistema democrático. Se a sentença da primeira instância for confirmada pelo Tribunal Regional Federal e ficar consolidado o entendimento de que basta o pagamento reiterado de dinheiro a políticos e partidos para caracterizar corrupção, porque se presume que haverá um toma lá dá cá escuso em um momento ou outro, como fica a arte de fazer política no Brasil? Como nossos candidatos a postos públicos receberão dinheiro de doadores sem risco de serem acusados de corrupção passiva? Deveremos proibir doações a políticos absolutamente? Ou deveremos permiti-las até determinado valor? Caso tomemos alguma dessas medidas isso será suficiente para que pagamentos a políticos não ocorram? E se ocorrerem, isso torna a atividade política necessariamente corrupta pelo fato de os políticos financiarem suas campanhas com dinheiro de doações? O que devemos considerar uma tentativa legítima de influenciar políticas públicas pelo financiamento da campanha de políticos e o que devemos considerar atividade de corrupção? Devemos então proibir totalmente as doações de particulares a políticos e estabelecer o financiamento público de campanhas? Será que temos dinheiro para isso e devemos gastar dinheiro com isso quando não temos nem como reajustar o benefício do Bolsa Família por falta de recursos?
Todas essas questões são muito prementes, considerando que o nosso presidencialismo de coalisão, em vigor desde o advento da Nova República em 1985, está em frangalhos. Estamos em uma situação em que fizemos o recall de uma presidente em 2016 por meio de um doloroso processo de impedimento que deixou em muitos o gosto amargo da revanche política daqueles que perderam as eleições. Convenhamos, condenar Dilma por pedaladas fiscais em um país em que a responsabilidade pela higidez das finanças públicas é dos três poderes atuando simultaneamente foi no mínimo uma grande hipocrisia. É louvável a ideia de nos livrarmos de chefes de governo incompetentes, mas então que adotemos o parlamentarismo para que esse processo seja mais transparente e menos sujeito a críticas. Perdendo a confiança do parlamento, o primeiro-ministro seria defenestrado sem que houvesse margem para disputas jurídicas que levem a uma influência excessiva do Judiciário no processo político brasileiro, o que a meu ver não é boa para tentarmos aumentar a credibilidade e a relevância do Legislativo.
A esse respeito, essa criminalização que em certos momentos a Operação Lava Jato parece estar realizando da atividade política é algo amedrontador para 2018. Qual será a reação dos brasileiros a esse vendaval de condenações quando formos às urnas em 2018? Haverá número recorde de abstenções, votos nulos e brancos? A qualidade dos parlamentares eleitos ficará ainda pior do que já é? A ideia de que todo político é ladrão enterrará de vez a possibilidade de introduzirmos o parlamentarismo no Brasil, regime que a meu ver daria mais estabilidade à nossa democracia?
Prezados leitores, a arte da política é a arte da negociação e a arte do possível. As nomeações para cargos em estatais como a Petrobras fazem parte do processo de formação de maiorias que permitem ao chefe do Executivo governar em um sistema em que o nosso Legislativo não têm poder para governar e assumir as responsabilidades pelas decisões tomadas no exercício do governo, mas tem poder para tornar a tarefa do chefe do Executivo difícil ou impossível. Em outras palavras, o Legislativo no Brasil é o filho adolescente que faz estripulias, mas sabe que o pater famílias, isto é, o Presidente, Governador ou Prefeito, estará lá para estabelecer a ordem e a disciplina e fazer as coisas andarem. Oxalá que o furacão causado pela Lava Jato, nos leve ao aprimoramento do nosso sistema de governo e não que o Executivo, além de ter que ceder às chantagens emocionais do filho adolescente ainda tenha que ter medo das lições de moral e do chicote do Judiciário. Que o crime de Lula e o castigo infligido ao maior líder popular do Brasil nos amadureça como nação e nos leve a optar pelo parlamentarismo. Quem sabe nós brasileiros não encontremos a redenção como encontrou Raskolnikoff, o personagem principal da obra-prima de Dostoiévski?