Há um consenso universal de que uma fonte fundamental de riqueza é o trabalho humano. Ocorre que o economista moderno foi educado para considerar o “labor” ou trabalho como algo pouco melhor do que um mal necessário. Do ponto de vista do empregador, é de todo modo simplesmente um item de custo, a ser reduzido ao mínimo caso não possa ser completamente eliminado. Do ponto de vista do trabalhador é uma “não-utilidade”; trabalhar é sacrificar o lazer e o conforto e o salário é uma espécie de compensação do sacrifício. Daí o ideal do ponto de vista do empregador de ter produção sem ter empregados e o ideal do ponto de vista do empregado de ter renda sem emprego.
Do ensaio “A Economia Budista”, escrito por Ernst Friederich Schumacher (1911-1977), pensador econômico alemão
É reacionária a posição que hoje temos na esquerda brasileira. Deixa o velho dormir em paz!
Trecho de entrevista à rede Band News do economista Luiz Carlos Mendonça de Barros em 27 de abril comentando sobre a necessidade de reformar a vetusta CLT, criação do presidente Getúlio Vargas
Prezados leitores, antes de irmos à rua protestar contra a reforma trabalhista, mesmo porque não adianta nada, já que ela já foi aprovada antes mesmo da greve geral, é sensato que ouçamos os especialistas que sabem muito mais do que nós sobre os assuntos econômicos, e portanto, sabem qual a melhor maneira de ganhar o pão nosso de cada dia. O consenso é que a CLT é bananeira que já deu cacho, chorar pela morte dela, decretada pelo nosso Congresso Nacional, é ficar olhando para trás inutilmente, pois os tempos são outros. Em sua conversa com o jornalista Ricardo Boechat, Mendonça de Barros disse que a CLT teve seu papel, foi moderna à época em que foi promulgada, mas já estava mais do que na hora de livrarmo-nos desse fantasma do passado.
Como é típico dos formadores de opinião no Brasil, que são todos viajados, leem a imprensa internacional, sabem o que ocorre no mundo, falam várias línguas, em suma são cidadãos globais, Mendonça de Barros citou um exemplo internacional, a saber, o caso da Alemanha que fez uma reforma trabalhista na década de 1990 em uma aliança entre um primeiro-ministro social democrata, Gerhard Schroeder, e lideranças sindicais esclarecidas, que permitiu ao país diminuir o desemprego e estimular o crescimento. A França, ao contrário, não fez reforma trabalhista nenhuma e está em uma situação lamentável, tão lamentável acrescentaria eu, que no segundo turno das eleições presidenciais tem uma candidata populista, Marine Le Pen, que toca no coração dos trabalhadores franceses como Donald Trump tocava no coração dos trabalhadores americanos durante a disputa de 2016, pois fala dos problemas que eles enfrentam, desemprego e queda da renda.
Não há como negar que os fatos corroboram o que o eminente economista brasileiro fala. De acordo com os dados do World Factbook da CIA, o crescimento real do PIB na Alemanha foi de 1,6% em 2014, de 1,5% em 2015 e de 1,7% em 2016. O desemprego foi de 4,6% em 2015 e de 4,3% em 2016. Na França, os números são todos piores: crescimento real do PIB de 0,6% em 2014, de 1,3% em 2015 e de 1,3% em 2016, e uma taxa de desemprego mais de duas vezes maior do que a apresentada pelo seu vizinho ao leste: 10,1% em 2015 e 9,7% em 2016. Em suma, atuando em um mesmo espaço econômico, a União Europeia, a Alemanha consegue ser mais competitiva porque suas leis trabalhistas são menos rígidas do que as da França e por isso o custo da mão de obra é menor, o que estimula os investimentos e a criação de empregos. Simples e bonito.
Esta é a premissa do argumento do Senhor Mendonça de Barros: diminuir o custo do trabalho como item da produção necessariamente faz os capitalistas investirem mais, porque lhes permite aumentar os lucros. Fazendo a mesma coisa aqui no Brasil certamente colheremos os frutos da nossa sensatez daqui a pouco, com a queda do índice de desemprego, que em 2016 foi de 12,6%. Adotemos as melhores práticas globais, sigamos o modelo alemão de potência exportadora! Sejamos flexíveis, dinâmicos e olhemos para o futuro! Mendonça de Barros, em sua conversa com Ricardo Boecha,t mostra-se otimista em relação à recuperação econômica do Brasil no futuro próximo. Nada mais natural, afinal ele já esteve no governo e, portanto, já colocou a mão na massa (foi presidente do BNDES de 1995 a 1998 e ministro das Comunicações de abril a novembro de 1998). E todo sujeito que se propõe a fazer coisas é um otimista, por definição, do contrário nem tentaria.
Eu nunca coloquei e muito provavelmente nunca colocarei a mão na massa, portanto permitam-se ser uma pessimista, como é do meu feitio. Permitam-me duvidar do transplante exitoso da receita alemã para o contexto brasileiro. Para tanto, vou assumir aqui o papel do Sr. Ricardo Boechat e continuar hipoteticamente a conversa com o Mendonça de Barros colocando-lhe alguns pontos:
A Alemanha tem uma indústria forte, em que se destaca a produção de bens de capital que incorporam a mais avançada tecnologia. Sua relação com a China, que é seu quinto maior parceiro comercial, é diria eu, de mutualismo, isto é, beneficia os dois lados. A Alemanha fornece à China bens que esta não produz e vice-versa. O Brasil, ao contrário, tem uma indústria que está em franco declínio, e uma das razões é que estamos perdendo feio para a China, que é capaz de fazer produtos xing-ling (isto é, de baixo valor agregado) a preços de banana. A China é atualmente nosso principal parceiro comercial, respondendo por 18,6% das nossas exportações e por 17,9% das nossas importações: compramos deles aquilo que antigamente fazíamos aqui, e vendemos aquilo que sempre vendemos desde 1500, isto é, os produtos da nossa luxuriante tropicalidade. Em suma, no mundo globalizado, nosso desempenho tem sido o de perdedores.
Sr. Mendonça de Barros esse introito serve para eu colocar-lhe a seguinte dúvida: considerando que o Estado brasileiro está largamente incapacitado de prover serviços de saúde e educação para os cidadãos, será que acabar com o mínimo que a CLT oferecia não é jogar o povo e a economia em um ciclo vicioso de baixa renda que leva a baixo consumo que leva a baixo investimento que leva a baixa inovação, que nos condena ao papel subalterno de fornecedor de commodities? Será que flexibilizar as leis trabalhistas em um país como o Brasil, em que a tal da rigidez da CLT não impede que haja inúmeras violações aos direitos dos trabalhadores, leva aos mesmos resultados positivos quer foram produzidos na Alemanha, um país em que o mínimo garantido aos cidadãos é infinitamente maior do que aqui?
Prezados leitores, em seu famoso ensaio, citado na abertura deste artigo, Ernst Friederich Schumacher, que acabou transformando-se em um guru do movimento ambientalista, critica a economia moderna ocidental pelo fato de seu foco ser no consumo a qualquer custo como medida de bem-estar e de ver o trabalho simplesmente como um custo de produção. Para Schumacher, que começou a estudar os princípios da religião budista na década de 50, uma economia budista vê as pessoas como mais importantes do que os bens produzidos, e a atividade criativa como mais importante do que o consumo. Na prática, isso significaria transformar o trabalho em um meio de desenvolver o caráter e as potencialidades do ser humano, o que implica a necessidade de a economia gerar trabalho para todos, para que todos possam desenvolver-se, e o consumo como um meio de atingir o bem-estar não um fim em si mesmo, o que significa a necessidade de buscar maneiras de obter mais bem-estar com menos consumo.
Oxalá a morte da CLT, cujo velório realizou-se timidamente hoje com a greve geral, não intensifique no Brasil os piores defeitos da economia moderna tal como apontados por Schumacher, transformando os trabalhadores brasileiros em itens de produção facilmente descartados entre um contrato e outro de prestação de serviços, sem vínculos fortes, sem segurança, sem possibilidade de fazer valer seus direitos em relação a empresas terceirizadas de pouca substância econômica. É mais provável que o Sr. Mendonça de Barros, eminente economista e homem público esteja coberto de razão e o enterro vindouro da CLT abra-nos as portas da bonança. Aguardemos.