Civilização é o bem; barbarismo é o mal. […] E quem vai definir para mim o que são a liberdade, o despotismo, a civilização, a barbárie? E onde ficam as fronteiras entre um e outro? Na alma de quem se encontra esse critério tão inflexível do bem e do mal, para que se possam avaliar fatos confusos e fugazes? Quem tem uma inteligência tão magnífica que lhe permita abarcar todos os fatos e pesá-los, ainda que no passado imóvel? E quem já viu uma situação em que o bem e o mal não estivessem juntos?
Trecho retirado do conto “Das memórias do Príncipe D. Nekhliudov” do escritor russo Liev Tolstói
O Lula ainda tem força para catalisar a favor e contra ele todo o processo eleitoral. O que seria lamentável, tanto para o País, quanto para ele. Seria um desserviço. Porque na melhor hipótese ele ganha, potencializando essa hostilidade mesquinha que vai agredir na porta do hospital a mulher dele que estava moribunda.
Trecho de entrevista dada pelo presidenciável Ciro Gomes ao jornal O Estado de São Paulo em 13 de fevereiro
Prezados leitores, o velório de Dona Marisa Letícia, ex-primeira dama, ocorrido no dia 4 de fevereiro, não foi lá muito divulgado na mídia escrita. Ocupou o meio dos jornais, sem destaque na primeira página ao conteúdo do discurso de Lula louvando sua esposa e aproveitando para lançar farpas contra seus inimigos. A mídia escrita não quis dar atenção porque quer que nós, eleitores brasileiros, esqueçamos o fundador do PT, quer que viremos a página, quer colocá-lo como alvo inevitável das garras de Sérgio Moro. No entanto, para quem como eu assistiu ao evento pelo youtube, não há como deixar de se admirar como o enterro transformou-se em um bem organizado ato político.
Bem organizado não pelo fato de que havia filas bem formadas para ver a defunta, de que todos estavam quietos e compenetrados, muito pelo contrário. O cenário era de balbúrdia, todos tirando fotos, todos interrompendo os padres que tentavam rezar e Lula que falou a contragosto, como ele frisou, porque não havia pensado em falar. Digo que foi bem organizado porque atingiu um fim que nosso ex-presidente provavelmente não tinha em mente de maneira clara antes do dia 4 de fevereiro, mas que decididamente concretizou-se à medida que ele improvisava. Não sou daqueles que consideram que Lula é um grande cínico, que aproveitou a morte da mulher para lançar-se candidato a Presidente em 2018 e já tinha tudo preparado em sua mente diabólica quando começou seu elogio fúnebre depois que os padres terminaram de rezar. Considero isso sim que Lula é um grande comunicador porque é autêntico e humano. Depois de ouvi-lo sempre ficamos com a impressão de que acabamos de ouvir uma pessoa de carne e osso que tem alegrias e tristezas como todos nós, ao contrário do constitucionalista Michel Temer que falando lembra a todos os brasileiros que é um privilegiado que nunca passou necessidade na vida e que condescende às vezes em descer de sua Torre de Marfim e dar uma olhada nos problemas dos habitantes da terra do pau-brasil.
O sapo barbudo, vestido de preto, falou do nascimento dos três filhos que teve com sua galega e de como ele nunca esteve ao lado da esposa no momento do parto porque estava sempre envolvido com a missão de construir o PT. Marisa foi fundamental para o seu sucesso justamente porque nunca reclamou de ter de cuidar da família sozinha enquanto seu marido fazia política. Uma grande mulher que morreu triste porque foi caluniada pelos inimigos de Lula, que com a morte dela lutará até o fim para vingar as afrontas que foram feitas a sua amada. Os letrados antipetistas acharão tudo isso cafona e ridículo, mas como o próprio viúvo enfatizou em sua fala, Marisa sempre lhe disse para não esquecer de onde ele tinha vindo. Lula veio do povo e ao povo sempre retornará enquanto for um animal político. No dia 4 de fevereiro, ele não falou aos que foram às ruas defender o impeachment de Dilma e a defenestração definitiva do PT. No dia 4 de fevereiro, o santo guerreiro prometeu ao seu público cativo que limpará a honra da mulher morta e da sua família, todos acusados de corrupção.
A pergunta que vem à mente é: como ele pretende fazer essa limpeza, nas urnas eletrônicas ou na barra dos tribunais, defendendo-se das acusações do outro santo guerreiro Sérgio Moro? É cedo demais para dizermos, mas quem assistiu às pessoas gritando Olê olê olê olá Lula la Lula la, Lula la… e um dos padres pedindo a Lula descansar porque o Brasil precisa dele percebe que se nosso ex-presidente precisava de uma motivação e de um motivo plausível para candidatar-se ele pode ter achado os dois no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, quando todos que estavam lá compartilharam sua dor e mais, sua indignação ante as maquinações das elites que não gostam dele, um legítimo representante do povo brasileiro sofredor e batalhador.
De fato, há muitos motivos para Lula e seus partidários indignarem-se e sentirem-se vítimas das elites. Há os comentários depreciativos que certos médicos fizeram nas redes sociais sobre o estado de saúde de Dona Marisa, incluindo a manifestação do desejo de que o capeta a levasse. Há os dois pesos e duas medidas do Judiciário. Moreira Franco, citado em delação premiada, foi confirmado ministro, enquanto Lula foi barrado por Gilmar Mendes por liminar. Há uma percepção de que a Lava Jato foi muito bem quando tinha como objeto os desmandos do PT, mas que agora caminha a passos mais dificultosos quando as investigações abrem-se para o amplo espectro de políticos de esquerda e de direita, incluindo membros do governo interino de Michel Temer. Houve os excessos cometidos contra Lula, como a divulgação ilegal das ligações telefônicas trocadas entre a então presidente Dilma e o seu ex-futuro ministro, ilegalidade a que os antipetistas não deram muita bola porque favorecia sua causa. A grande imprensa contribui para esse sentimento de que os critérios utilizados para julgar a administração do eminente constitucionalista são muito mais brandos do que aqueles utilizados para avaliar o desastre econômico do governo petista. A queda da inflação sob Temer é comemorada como grande vitória, assim como o limite de gastos estabelecido na Constituição, a reforma trabalhista e a reforma previdenciária. Mas tudo isso beneficia muito mais o andar de cima do que o de baixo, pois para o povo os dados relevantes são que o comércio, que normalmente emprega as pessoas de menor qualificação, cortou 182 mil vagas em 2016, e que a taxa de investimento está atualmente em 1,6% do PIB, o que torna inviável a possibilidade de recuperação significativa do nível de emprego ao menos no curto e no médio prazos.
Prezados leitores, concordo inteiramente com Ciro Gomes que diz, claro em causa própria porque quer ser o candidato da esquerda, que a volta de Lula é algo ruim para o Brasil, porque vai incitar o Fla-Flu. Infelizmente, aqueles que subestimam a capacidade de Lula porque ele não tem diploma universitário ou que simplesmente não gostam dele ajudam na sua volta quando dão motivos para que o sapo barbudo se sinta injustamente perseguido. Afinal, ele sempre desempenhou com maestria o papel de vítima, especialmente porque de fato foi vítima, ao menos durante parte de sua vida. Entre acusá-lo ou defendê-lo, prefiro admitir, como fez o grande Tolstói, que não tenho uma régua infalível que me permita saber o que é certo e o que é errado, e embora eu não deixe de utilizar minha modesta régua para nortear minhas escolhas, consigo vislumbrar a possibilidade de que haja outras réguas tão ruins ou tão boas quanto a minha. Cada um tem seu bem e seu mal, e admitir isso é um grande passo em prol da nossa humanidade comum. Quem sabe um dia nós brasileiros cheguemos a essa epifania coletiva?