[…] nós não procedemos direito com o Direito, e fomos dando respostas políticas, morais e econômicas quando a resposta deveria ser jurídica. Assim fomos deixando que os predadores externos e internos do Direito o fossem enfraquecendo. […] Grande parcela da magistratura trabalha com a concepção ativista, e qual é o problema? O ativismo é aquilo que eu chamo de uma atitude comportamentalista, é quando o juiz substitui o legislador. São juízes ético-político morais.
Trecho da entrevista de Lenio Steck, professor de pós-graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos em entrevista à Revista da CAASP
Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal.
Parágrafo 1º do artigo 53 da Constituição Federal
Perderá o mandato o Deputado ou Senador:
que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.
Artigo 55, inciso VI da Constituição Federal
Prezados leitores, sei que há assuntos mais importantes no Brasil do que as filigranas jurídicas a que temos sido submetidos sem entendermos muito bem o que está ocorrendo. Há a crise das finanças públicas, o desemprego de 12 milhões de pessoas, a reforma da previdência que vem sendo colocada como a salvação da lavoura, ou ela ou o dilúvio, a recessão econômica No entanto, são essas filigranas que ocupam as manchetes dos jornais, por uma simples razão. Para nós, brasileiros, cheios de raiva diante da extensão da corrupção na política, não importam os detalhes das discussões intermináveis sobre como os membros do Judiciário têm interpretado as leis e a Constituição para tomar suas decisões bombásticas, o que importa é o resultado prático. E para nós resultado prático significa ver as algemas tilintarem, os maganos passarem longas temporadas na prisão, os deputados, senadores e presidentes perderem o cargo. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal tem dado uma resposta e tanto à sociedade.
Em 31 agosto de 2016, Dilma Rousseff teve o mandato cassado pelos senadores em sessão presidida pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, sem que ficasse inabilitada para o exercício de funções públicas, como manda o artigo 52, parágrafo único da Constituição. Em outubro de 2016, o STF estabeleceu que é possível a execução de uma pena após condenação na segunda instância, a despeito do que diz o inciso 57, artigo 5º da Constituição Federal, que estabelece a presunção da inocência até que todas as possibilidades de recurso tenham sido esgotadas. Em 4 de dezembro de 2016, manifestações em várias cidades do Brasil pediram a cabeça de Renan Calheiros e o Supremo Tribunal Federal em 7 de dezembro estabeleceu um quid pro quo com os senadores. Foi permitido a Renan Calheiros, que é réu em ação que tramita naquela corte, permanecer presidente do Senado Federal, mas ele foi retirado da linha sucessória. Não há nada na Constituição estabelecendo isso, além daquilo que está transcrito na abertura deste artigo. O Supremo burilou essa solução para salvar as aparências, para fingir que os poderes da República respeitam-se mutuamente e sabem exatamente quais são suas respectivas áreas de atuação.
E não é só o Supremo Tribunal Federal que têm nos brindado com a satisfação do nosso desejo de vingança. Os ilustres membros do Ministério Público Federal elaboraram o projeto de lei 4.850, que “estabelece medidas contra a corrupção e demais crimes contra o patrimônio público e combate o enriquecimento ilícito de agentes públicos”. As mesmas pessoas que no domingo exigiram a defenestração de Renan Calheiros manifestaram seu apoio unânime ao projeto cruzadista, que inclui medidas polêmicas, algumas felizmente retiradas pelos deputados tão massacrados pela opinião pública. Havia o teste de integridade para funcionários públicos que previa a realização de uma espécie de pegadinha do malandro consistente no oferecimento de propina a funcionários e verificação da sua reação. Havia restrições à concessão do habeas corpus, previsto no artigo 5º inciso 68, da Constituição Federal. Por outro lado, ainda estão lá as hipóteses de aceitação de provas ilícitas produzidas de boa fé, que nos termos do artigo 5º, inciso 61 da Constituição Federal são inadmissíveis. Essas filigranas a que os deputados e senadores devem prestar atenção antes de dar seu voto pela aprovação ou rejeição do projeto são totalmente irrelevantes para nós brasileiros, que estamos preocupados somente com colocar os que roubam nosso dinheiro na cadeia, não importando os meios.
E assim é que a tal Constituição Cidadã promulgada por Ulysses Guimarães em 5 de outubro de 1988 está sendo deturpada, violada a torto e a direito e ignorada. Pelos membros do STF que decidem como querem e depois burilam algum argumento jurídico à guisa de interpretação do que a Constituição diz, por certos membros do Ministério Público Federal com suas medidas anticorrupção, que se fossem aprovadas do modo como foram originariamente formuladas dariam um imenso poder aos promotores e procuradores para investigar e denunciar os suspeitos de enriquecimento ilícito. E por certa parcela do povo, que vai às ruas exigir mais ladrões na cadeia não importa a que preço.
Talvez tenha chegado o momento de aceitarmos a realidade de que de gambiarra em gambiarra a Constituição de 1988 está em coma. Ela tinha sido prometida como o instrumento que nos levaria ao governo das leis e não dos homens. Neste ano de 2016, vemos que a letra da Constituição não tem muito valor no Brasil e que o que importam são os heróis ou vilões, a depender do ponto de vista, que têm sua própria pauta de prioridades e que se valem da Constituição como instrumento para cumprir tal agenda. Essa cacofonia a que estamos submetidos diariamente, as quedas de braço entre os três poderes, o toma lá dá cá entre o governo e o Legislativo para a aprovação das PECS, as reações das autoridades aos clamores da imprensa e das ruas manifestam-se em relação à Constituição de 1988 em flagrantes violações a ela por todos aqueles que juraram protegê-la. Não seria o caso de admitirmos que ela não serve para mais nada e que uma nova Assembleia Constituinte deveria ser convocada para elaborar outra? Não seria o caso de admitirmos que nós brasileiros não nos preocupamos muito com liberdades e garantias que sejam estendidas aos nossos inimigos, sejam eles corruptos, assassinos ou políticos de quem não gostamos? Não seria o caso de admitirmos que não somos capazes de construirmos e mantermos a social-democracia ou a democracia social de nobres e fundamentais direitos que a Constituição de 1988 vislumbrou porque somos por demais improdutivos e vingativos para tanto? Ou será que é melhor fingirmos que está tudo bem com a Constituição e que ela está sendo aplicada à risca para evitar um penoso processo de elaboração de um novo texto em um momento em que não temos dinheiro para gastar com firulas?
Prezados leitores, o risco que corremos ao não sermos transparentes sobre o que está acontecendo na prática com a Constituição de 1988 é que acabaremos vendo projetos como a reforma da previdência, a reforma trabalhista e o estabelecimento de teto de gastos serem aprovados como se eles não tivessem impacto nenhum sobre aquilo que os deputados constituintes imaginaram para o Brasil há 28 anos. Na prática, e sabemos que a prática é o que importa, para além das filigranas jurídicas, a crise em que estamos mergulhados será paga pelo povo brasileiro que a Constituição de 1988 tentou contemplar com direitos sociais, e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, e igualdade e a justiça”. Esperem e verão.