No Brasil que encontramos não havia apenas o déficit fiscal. Havia também, lamento dizê-lo, um certo déficit da verdade. Devo dizer que a gigantesca crise que herdamos é, em parte, produto de tentativas de disfarçar a realidade.
Trecho do discurso de Michel Temer em 21 de novembro na abertura das reuniões do novo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social
E, por maior que fosse o mal, a noite estava serena e bonita, em todo este mundo de Deus a verdade existia e continuaria a existir, também ela serena e bonita, e todos na terra apenas esperavam fundir-se com a verdade, assim como a luz da lua fundia-se com a noite.
Trecho do conto “No fundo do Barranco” de Anton Tchekhov (1860-1904), traduzido para o português por Rubens Figueiredo
Prezados leitores, tenho andado em busca da verdade em algum lugar. A grande imprensa não me satisfaz porque em sua maior parte os órgãos que supostamente deveriam nos informar sobre a realidade têm sua própria pauta de interesses. Neste ano no Brasil a prioridade dos principais veículos de comunicação era defenestrar o PT do poder, e para isso martelou-se ad infinitum a respeito das descobertas escabrosas da Operação Lava-Jato. A novela das roubalheiras dos políticos segue com os novos capítulos eletrizantes sobre o desespero de Anthony Garotinho ao ver-se constrangido a ser hospitalizado no Presídio do Bangu, pelo medo de ser morto por seus inimigos e sobre as joias adquiridas com propina por Adriana Ancelmo, esposa de Sérgio Cabral. Queremos ver no xilindró, com a ajuda do santo guerreiro Sérgio Moro, todos os ladrões que sangram o erário e tiram dinheiro da saúde e da educação.
A ideia predominante é que se punirmos exemplarmente cortaremos o mal da corrupção pela raiz e uma era de prosperidade será inaugurada, porque teremos resolvido o principal problema do Brasil. Enquanto a grande imprensa proporciona o espetáculo da imolação dos peixes graúdos em primeiro plano e espera-se ansiosamente o grand finale com a prisão de Lula, há uma pauta extensa de reformas que estão se desenrolando como pano de fundo praticamente invisível para a maior parte da população, fissurada no sangue que está jorrando no proscênio. Como nosso excelentíssimo Presidente da República demonstrou um apreço pela verdade na reunião inaugural com os novos membros do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, é com grande esperança que me dirijo a ele em busca da verdade, porque na grande imprensa só encontro sensacionalismo e meias-verdades ou meias-mentiras. Para tanto, farei algumas perguntas ao nosso constitucionalista no poder.
Senhor Michel Miguel Elias Temer Lulia, a reforma da Previdência vislumbrada por sua equipe, cuja principal medida é estabelecer uma idade mínima para a aposentadoria de 65 anos tanto para homens quanto para mulheres, leva em conta o fato de que a mulher responde por dois terços dos aposentados por invalidez, de acordo com a pesquisadora do IPEA Ana Amélia Camarano? Aliás, os doutos especialistas atuariais estão considerando em seus cálculos que com o envelhecimento da população a invalidez tende a aumentar (até 2050 deve haver um aumento de 181%), o que fará com que muitas pessoas, tanto homens quanto mulheres, não conseguirão chegar aos 65 anos trabalhando? Se não estão considerando nãos seria o caso de começar a fazê-lo e mostrar à população que a reforma da Previdência só será efetiva caso ela venha acompanhada de uma expansão na oferta de serviços de saúde aos brasileiros para que todos nós tenhamos condições de chegar aos 65 anos vivos, operantes e laboriosos contribuintes do sistema brasileiro de seguridade social?
Senhor Michel Miguel Elias Temer Lulia, o que o senhor fará a respeito da medida tomada por alguns Estados da Federação, a saber o Rio de Janeiro e agora o Rio Grande do Sul, de decretar estado de calamidade financeira? Permita-me expor-lhe minha consternação ante essa gambiarra jurídica, para usar um termo vulgar. Nos termos do artigo 65 da Lei Complementar 101, a dita Lei de Responsabilidade Fiscal, o reconhecimento de calamidade pública pela Assembleia Legislativa estadual permite que haja o descumprimento de certas exigências estabelecidas pela LRF, entre as quais a diminuição das despesas com pessoal dentro de um certo período. Se a moda pega, os Estados pelo Brasil afora farão uso desse expediente para continuar a gastar tudo de acordo com a lei de responsabilidade fiscal, esperando uma ajuda providencial da União. O senhor estará disposto a ser condescendente com os Estados que tem sido perdulários há anos e a socializar os prejuízos, fazendo o governo federal assumir o ônus? Caso o senhor aceite o argumento jurídico da calamidade não será um contrassenso, considerando que o senhor foi alçado ao poder depois da defenestração da presidente eleita por causa de suas pedaladas fiscais? Será moralmente correto punir exemplarmente o PT que praticou o populismo fiscal, como afirmou Geraldo Alckmin, e ao mesmo tempo perdoar o mesmo comportamento irresponsável nos Estados?
Senhor Michel Miguel Elias Temer Lulia, o senhor enfatiza sempre a herança maldita dos quase 14 anos do PT no poder, mas por acaso o senhor não foi conivente com os desmandos, considerando que se omitiu, não vindo à público esclarecer os brasileiros a respeito do que se passava? Se é verdade que Dona Dilma Rousseff não lhe dava espaço, isso não mostra uma falta de postura, eu diria mesmo de liderança da sua parte? Se lhe causava desgosto aquilo que Dona Dilma fazia não era o caso de ao menos expor-lhe seus pensamentos ou o senhor era tão irrelevante que nem uma miséria audiência conseguia? A propósito de capacidade de mando, o senhor por acaso considera que para ser um bom Presidente da República basta falar muito bem a última flor do Lácio, inculta e bela? Que só porque seu português é infinitamente melhor do que o claudicante idioma falado por Dona Dilma o senhor tem uma estratégia e uma visão infinitamente melhores? A esse respeito, o que o senhor vislumbra para o Brasil no curto e o médio prazo? Para o senhor a PEC do Teto aprovada em primeiro turno no Congresso Nacional representa o quê? Um expediente emergencial para tranquilizar os investidores em títulos públicos, o coroamento do seu período na presidência, que já terá valido a pena se ela for finalmente aprovada, ou um meio para começarmos a reconstrução do Brasil depois do desastre do PT no poder? E se ela for um meio, quais os próximos passos? Talvez se o senhor deixasse de ficar pintando de cores tenebrosas o legado do PT, como se não fosse também compartilhado pelo seu partido, o PMDB, que coabitava com aquele no poder federal, não ficássemos com a impressão de que o objetivo é nos chantagear, nos constranger a aceitar sacrifícios em nome do estado calamitoso das coisas, sacrifícios estes que não serão divididos de maneira equânime por todos os brasileiros.
Prezados leitores, fiz muitas perguntas ao nosso Presidente da República, que aponta corretamente haver um déficit da verdade no país. Como considero que Michel Temer está mais para bombeiro ansioso do que para líder visionário, confesso que procurarei refúgio nesses dias periclitantes por que passa o Brasil nos contos do escritor russo Anton Tchekhov, que chegava à verdade por sua total descrença de que houvesse algum sistema de pensamento correto, seja ele filosófico ou religioso. Ele singelamente mostrava as pessoas em situações cotidianas, sem emitir opinião sobre se seus atos eram bons ou maus. Mas o contraste entre o comportamento dos diferentes personagens ante determinadas situações que lhes eram postas era sempre revelador do caráter de cada um. Nesses tempos de mesóclises, em que o Presidente da República enfatiza os desmandos do governo anterior, do qual era membro oficial, para esconder sua própria mediocridade, as verdades despretensiosas de Tchekhov são sempre bem-vindas.